Loredano reencontra o tempo perdido de J. Carlos

Caricaturista lança livro sobre o fundador da arte da charge na primeira metade do século 20

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Por Agencia Estado
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Os caricaturistas são como os gansos do Capitólio: quando começam a grasnar, há perigo perto. Esse era o texto sucinto que acompanhava uma charge da revista Careta, em setembro de 1948, boutade perpetrada pelo cartunista J. Carlos (1884-1950), talvez o mais influente do século 20, com seu traço art déco e seu humor elegante. Tanto sua obra quanto sua personalidade são temas recorrentes para o cartunista Cássio Loredano, de 54 anos, colaborador do Estado e com 30 anos de trabalho como profissional. Mas não só os cartunistas amam J. Carlos. Para se ter uma idéia, Carlos Drummond de Andrade o chamava de "ídolo". Mas a obsessão de Loredano com o artista da primeira metade do século 20 já rendeu até hoje quatro livros e uma exposição, J. Carlos e o Estado Novo, em 1997. Agora, Loredano volta à carga com o compacto O Bonde e a Linha - Um Perfil de J. Carlos (Editora Capivara), sob a coordenação editorial do agora novo presidente da Fundação Biblioteca Nacional, Pedro Corrêa do Lago, ele mesmo um ativo colecionador de charges e cartuns. O Bonde e a Linha foi escrito entre outubro e novembro de 2002, para celebrar o centenário da publicação do primeiro desenho do pioneiro. Espírito de época - A perspectiva desse perfil sentimental escrito por um fã ardoroso parece ser a de recriar o espírito de uma época. Uma citação já ao final do livrinho dá a pista. "O ente que olhar, daqui a cem anos, as obras-primas de J. Carlos, poderá viver a vida que andamos vivendo", escreveu Álvaro Moreyra. É uma viagem no tempo que o autor empreende para resgatar manhãs e tardes de glória e mesmo crepúsculos amarelos. "O cortejo desceu a Marquês de São Vicente e entrou na rua Jardim Botânico. Os muros do Jockey e da Hípica querem impedir que a rua veja os cavalos e tapam a paisagem. Os aterros apartaram a Lagoa da rua mais de cem metros." Essa é a descrição do enterro de J. Carlos, sepultado no mesmo dia de sua morte "porque havia temores de confusão nas ruas no dia seguinte, dia de eleição". Além de rever um Rio de Janeiro que não existe há muito - mas que ainda emite fascínio -, Loredano reparte com seu antecessor a paixão pelo transporte coletivo - J. Carlos pongava nos bondes e Loredano vai de ônibus. Os cenários é que são bem diferentes. Havia um clima de febril mudança no Rio de J. Carlos - e não era mudança de dinheiro dos cofres públicos para a conta de Silveirinha. Em 1903, lembra o autor, havia um estrondo no ar de milhares de marretas derrubando 600 edifícios perto da Rua do Ouvidor. "Estavam abrindo a grande avenida, de 1.800 metros de extensão, e que ia superar a Avenida de Mayo, em Buenos Aires, até ali a mais larga da América do Sul." Naquele início de século, J. Carlos tornou-se o maioral. Publicava em O Malho, Tico-Tico, Fon-Fon, Século XX, Leitura para Todos, Careta e as mais influentes revistas da época. Com o passar do tempo, foi evoluindo em diversos aspectos, assimilando mudanças, criando linguagem. Em 1933, ao publicar Minha Babá para a coleção Biblioteca Infantil de O Tico-Tico, promoveu mudanças no texto que chamaram a atenção do pesquisador Loredano. "As alterações que tinha promovido no texto revelam ainda que J. Carlos tinha na rua ouvidos tão atentos quanto o olhar, reproduzindo com fidelidade a fala brasileira, por exemplo, naquilo que o nosso português recebeu de contribuição africana." Para o autor do livro, J. Carlos abriu uma picada na selva com seu trabalho. Além da contribuição artística, do traço belo e limpo, Loredano acha que o pioneiro do cartum deixou um legado moral, de "vergonha na cara", uma saga contra o cinismo e o desespero. "J. Carlos pegou a caricatura brasileira literalmente na idade da pedra. Quarenta e oito anos depois, tinha posto o País no mapa, nesta matéria", escreve. "E, quando acaba, o mundo está doente. O humorismo vai se tornar cerebral e sardônico, e adeus inocência de J. Carlos. O caricaturista vai retirar de novo a figura do cenário - e adeus leveza e inconsciência de melindrosa: o Homem está precisando estar só, consigo, com o espelho, com o divã, para entender porque fez o que fez." O admirador, no entanto, é rigoroso na análise do antecessor. "Que desenhos tão incrivelmente grosseiros e gordurosos os trabalhos dos primeiros anos. É inacreditável que o príncipe da elegância os tenha feito", escreve Loredano, analisando os primeiros trabalhos de J. Carlos para A Avenida e Tagarela. Tudo que o artista queria, àquela altura - corria o ano de 1903 -, era desenhar como o pioneiro Ângelo Agostini, sua maior fonte de influência até o fim dos dias. Cássio Loredano (Prêmio HQ Mix de Caricatura em 2001) foi repórter e tornou-se profissional do cartum ao entrar para o extinto semanário Opinião, em 1972. Sorte de seus fãs que uma de suas maiores influências tenha sido esse José Carlos de Brito e Cunha, o J. Carlos, monstro do traço e influenciador de toda uma geração. Ou duas. Ou três. Outro artista do traço, Chico Caruso, escreve no prefácio de O Bonde e a Linha que J. Carlos ainda rende muito livro. Há o J. Carlos publicitário, o portrait-chargista e o J. Carlos para crianças, este o "mais bonito e abrangente", segundo Loredano. "Minhas charges dizem o que sinto e penso", dizia J.Carlos, que produziu compulsivamente - uma média de três desenhos por dia. Na opinião de seu perfilador, Cássio Loredano, ele foi, ao lado de Noel Rosa, o maior cronista do Rio de Janeiro.

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