Longa de estreia de Júlia Murat traz realismo mágico latino-americano

'Histórias que só existem quando lembradas' fala sobre o tempo redescoberto e estreia nos cinemas

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Por Luiz Carlos Merten
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Júlia Murat está grávida - gravidíssima. Teve de desistir de acompanhar Histórias Que Só Existem Quando Lembradas em mais um festival internacional - e foi substituída por sua mãe produtora, Lúcia -, porque as companhias aéreas não a deixam mais viajar, com aquele barrigão. Júlia vive a dupla emoção de parir uma filha e um filme, que finalmente chega ao circuito. Mas sabe muito bem a diferença - "A filha é um vínculo para sempre, o filme logo vai deixar de ser meu. Lançado, será do mundo. A filha vai ser sempre minha."Desde que integrou a programação paralela do Festival de Veneza, no ano passado, Histórias tem dado a volta ao mundo. Participou de mais de 20 festivais, ganhou dezenas de prêmios - entre eles melhor filme em Abu Dhabi e Santa Maria da Feira. Em Groningen, na Grande Roterdã, foi o melhor filme votado pelo público. Júlia ri, porque seu filme é autoral, cabeça. Isso não o tem impedido de encontrar seu público. O que essas histórias de velhas, num mundo que parece estar se acabando, têm de tão fascinante? O que tiveram de tão atraente para ela própria, que passou tantos anos dedicada ao projeto?Júlia trabalhava como assistente de direção de sua mãe em Brava Gente Brasileira quando teve o primeiro vislumbre do que viria a ser Histórias. Foi na pequena cidade de Vila Coimbra que ela se surpreendeu ao descobrir que o cemitério estava fechado. "As pessoas tinham de viajar horas até outra cidade para enterrar seus mortos." Aquilo ficou com ela. Histórias começou a nascer ali, mesmo que a pesquisa e o roteiro tenham surgido mais tarde, há coisa de uns cinco anos. "Percorri cidades do Vale do Paraíba por dois meses, fazendo entrevistas com moradores locais. Foram 100 horas de material gravado e mais de 100 páginas de diálogos transcritos, que serviram de inspiração para a fala dos habitantes da cidade fictícia de Jotuomba."Na ficção de Júlia, Jotuomba é um pequeno vilarejo em que ninguém morre há muito tempo. O cemitério está trancado com cadeado. Cada morador executa suas funções. Madalena faz pão para o armazém do Antônio. Sua rotina é a mesma - ela atravessa o trilho onde o trem não passa há anos, limpa o portão do cemitério trancado, ouve o sermão do padre, tergiversa com amigos e amigas, velhos como ela. Madalena, interpretada por Sônia Guedes, vive da memória do marido morto. E é aí que chega a "estrangeira", a fotógrafa Rita (Lisa Fávero), que vai sacudir o tempo morto da cidade fantasma.Histórias tem algo do realismo mágico latino-americano. "Tinha mais. O marido morto aparecia mais nos primeiros tratamentos do roteiro. Com o tempo, o filme foi ficando mais documentário, sem abrir mão da ficção. Sônia (Guedes) é extraordinária", avalia a diretora. Sônia é atriz, mas interage com não profissionais. O diálogo mescla o escrito com o improvisado. A diretora trabalha no registro da luz natural, que confere uma delicadeza (uma irrealidade?) a Histórias. Por que uma fotógrafa para desorganizar o organizado e devolver Madalena à vida? "Ah, isso é autobiográfico. Eu era fotógrafa e queria botar minha experiência na história."

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