Livros póstumos

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Por Sérgio Telles
Atualização:

David Foster Wallace, autor de ensaios (gênero pouco praticado entre nós), reportagens, contos e romances unanimemente elogiados pela crítica norte-americana, matou-se em sua residência em 12 de setembro de 2008, aos 46 anos. Seu prestígio literário só fez crescer desde então, sendo enfatizados sua habilidade em recriar a linguagem oral e as idiossincrasias linguísticas de diversos grupos culturais e profissionais, a acuidade com que descreve os relacionamentos humanos e seus conflitos, o estilo lúcido, desencantado e irônico. David Foster Wallace é pouco conhecido no Brasil, onde apenas um de seus livros foi traduzido - o Breves Entrevistas com Homens Hediondos, publicado pela Companhia das Letras em 2005.Wallace deixou, impresso e em arquivos de computador, o inacabado livro no qual trabalhava havia dez anos, desde o lançamento em 1997 de Infinite Jest, o romance com o qual, na opinião de muitos, alterou o panorama literário norte-americano. Por dois anos, o extenso material de mais de mil páginas foi submetido a um cuidadoso trabalho de editoria que o reduziu pela metade e, intitulado como The Pale King, foi lançado no último dia 15 nos Estados Unidos, atraindo a atenção dos meios literários.O interesse em torno de The Pale King nos faz pensar sobre as questões levantadas pela publicação póstuma de originais e rascunhos deixados por seus autores.Tal publicação só ocorre, é claro, com autores de reconhecida importância e obedece a diversos interesses. Entre eles, o financeiro não é dos de menor peso - editores e herdeiros do autor não querem desperdiçar a oportunidade de ampliar suas rendas. Mas há também os interesses literários, pois os estudiosos da obra se beneficiam com o rascunho inconcluso que lhes permite observar melhor os processos criativos do autor, seguindo a maneira como o mesmo dá forma ao material, através de cortes, supressões, acréscimos, etc.A legitimidade desses interesses beira com questões éticas. Um autor pode não ter publicado em vida seus textos por muitos motivos, como a impossibilidade de encontrar editores, o considerar que a obra realizada ficou aquém do desejado ou ainda por não ter conseguido desenvolver as ideias das quais deixou apenas meros esboços que nada significam sem o trabalho que as transformariam numa produção artística. Tirando-se o primeiro caso, deve-se, nos demais, publicar aquilo que o próprio autor deixou inédito? Sem falar que muitas vezes o material deixado pelo escritor está tão cru e incipiente que aquilo que vem a lume dificilmente pode ser-lhe atribuído, tantas foram as intervenções necessárias, realizadas pelo editor, para deixar o texto apresentável ao grande público.Um exemplo recente dessa situação pode ser vista com o último livro de Vladimir Nabokov - The Original of Laura (O Original de Laura, Alfaguara Brasil). Neste caso havia uma complicação a mais. O autor, morto em 1977, deixara apenas uma versão inicial disposta em 138 fichas de arquivo (equivalentes a 30 páginas manuscritas) sem nenhuma ordem estabelecida - como costumava fazer com todos seus livros - e explicitara em seu testamento que o mesmo deveria ser destruído. A esposa Vera e o filho Dmitri não conseguiram cumprir suas ordens e, depois de um demorado debate entre estudiosos e editores, que se estendeu por mais de 30 anos, o livro foi publicado em novembro de 2009.Como é sabido, Nabokov atingiu a fama mundial em 1955 com seu livro Lolita, no qual aborda a paixão de um homem de meia-idade por uma pré-adolescente. O romance gerou um filme também famoso, desencadeando uma incontrolável epidemia de Lolitas pelo mundo afora. Transcendendo esse sucesso popular, Nabokov é considerado o maior romancista de língua inglesa do século passado, apesar de ter o russo como língua materna.O caso de Nabokov é interessante, pois se até o momento apontávamos para a suposta cupidez dos herdeiros e editores no trato com o material inédito deixado pelo autor, fica agora evidente a ambiguidade do próprio autor frente a seu texto inacabado. Afinal, se Nabokov teve tempo e forças para ordenar a destruição do livro, por que ele mesmo não o fez, poupando à mulher e ao filho tamanha responsabilidade? Sua atitude parece demonstrar uma forte ambivalência, pois enquanto, por um lado, ordenava a eliminação da obra, por outro espicaçava com isso a curiosidade dos estudiosos, assegurando assim sua sobrevivência.Algo semelhante poderia ser dito sobre o The Pale King, de David Foster Wallace, que teria disposto os originais de forma a serem facilmente encontrados após sua morte, delegando dessa forma a outrem a responsabilidade de sua publicação. Mas em casos como o dele, a ambivalência - ou seja, a existência simultânea de sentimentos intensos e contraditórios, como amor e ódio frente a praticamente tudo a que estejam ligados - é muito mais ampla e radical, o que termina por debilitar o próprio apego à vida.De seu excelente livro de contos Breves Entrevistas com Homens Hediondos, duas narrativas adquiriram especial interesse, pois nelas está prefigurado o desfecho que daria à sua vida. São eles A Pessoa Deprimida e Suicídio como Um Presente.No primeiro, acompanhamos as atribulações da "pessoa deprimida", empenhada em seguir ao pé da letra as orientações da terapeuta, cujas condutas são fortemente desacreditadas e ridicularizadas pelo autor. No segundo, Wallace mostra com grande acuidade psíquica - à qual um psicanalista nada teria a acrescentar - a mortífera relação entre uma mãe e seu filho que leva a um beco sem saída.Ambos ilustram bem o dito freudiano de que os grandes escritores têm um conhecimento intuitivo direto do inconsciente, coisa que os analistas só adquirem através de um longo treinamento.

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