Livro traz cartas de Caio Fernando Abreu

Organizado por Italo Moriconi, conjunto de cartas busca recuperar o enredo espatifado de uma vida, já que o escritor Caio Fernando Abreu era um missivista contumaz

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Por Agencia Estado
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O escritor Caio Fernando Abreu detestava conversar pelo telefone, preferindo o contato pessoal ou, melhor ainda, trocar cartas. Caio Fernando escreveu compulsivamente, febrilmente, chegando a endereçar até quatro envelopes em apenas um dia. O ato tornou-se uma obsessão depois de descobrir que estava infectado pelo vírus da aids, que terminou provocando sua morte, em 1996, aos 47 anos. A correspondência do autor, um dos principais da literatura brasileira entre os anos 70 e 90, acabou motivando o professor de literatura Italo Moriconi a organizar uma cuidadosa seleção. O resultado, depois de anos de trabalho, é o livro Cartas (534 págs., R$ 48), que a editora Aeroplano lançou recentemente. "Ele gostava de conhecer pessoas para escrever cartas" afirma Moriconi, que as organizou em ordem cronológica, entre 1965 e 1995, ao invés de separadas por destinatários, buscando recuperar o enredo espatifado de uma vida. O escritor gaúcho escreveu para familiares, escritores, músicos, atores e, nessas cartas, revelava suas inquietações, marcadas por procuras e perguntas. Nos 30 anos que dedicou aos contatos epistolares, Caio Fernando Abreu revelou desde confissões prosaicas (como assistir a programas populares na televisão ou o sonho de ter uma livraria especializada em pesos de papel de cristal chamada Virgínia Woof) até as mais dolorosas, como quando descobriu ser portador do HIV. "Saio desta mais humano e infinitamente melhor mais paciente - me sinto privilegiado por poder vivenciar minha própria morte com lucidez e fé", escreveu para a amiga e pintora Maria Lídia Magliani, em 16 de agosto de 1994, uma das primeiras a receber a notícia. Cinco dias depois, provocou uma forte emoção nos leitores de sua coluna publicada no jornal O Estado de S. Paulo quando escreveu a crônica Carta para Além dos Muros, em que corajosamente assumiu o contágio e revelava estar internado em um hospital em São Paulo. "Busquei recuperar o romance fragmentado de uma vida", explica Moriconi. "No romance de uma vida, mais por ser romance que por ser uma vida simplesmente, tudo que é relatado parece adquirir sentido, sendo o sentido maior dado pelo próprio fim da vida, ponto final do romance mas não necessariamente fim do escritor, já que escritor e escritora são aqueles indivíduos que sobrevivem a si próprios através de cartas deixadas aos pósteros, sua obra escrita." Caio Fernando exibia uma prolixidade típica de Mário de Andrade, cuja correspondência com os principais artistas de sua época permite mapear todos os caminhos tomados pelo modernismo brasileiro. Como seu colega paulista, o autor de Morangos Mofados escrevia muito, chegando a 20 laudas em determinadas cartas. E também adorava criar novos vocábulos, como "vezenquando". Moriconi decidiu dividir o livro em duas partes - a primeira contendo as cartas escritas nos anos 80 e 90 e, a segunda, voltando no tempo, exibe as cartas adolescentes escritas para os pais até as produzidas no final da década de 70. Na primeira parte, uma das principais interlocutoras é a escritora e poeta Hilda Hilst, que apoiou Caio Fernando no início de sua carreira, tornando-se uma espécie de madrinha - em suas cartas, ele conta detalhes de sua vida profissional e suas inquietações pessoais. Desabafo - É pela correspondência, aliás, que Caio Fernando revela as turbulências de sua vida. É por essa escrita que ele desabafa as dificuldades de ser escritor profissional: "Até hoje, cinco livros publicados, 34 anos, me debato todos os dias para sobreviver e para não desistir. Nélida Piñon costuma dizer que, de alguma forma, todos os dias alguém bate à nossa porta e nos convida a desistir." Escrever, no entanto, se mostra uma atividade vital para sua existência, como revela na carta escrita à amiga Jacqueline Cantore, logo depois do suicídio da escritora Ana Cristina César: "Com que direito, Deus, com que direito ela fez isso? Logo ela, que tinha uma arma para sobreviver - a literatura - coisa que pouca gente tem." Por meio de sua correspondência, Caio Fernando reforça a importância de seus livros para a literatura urbana brasileira, pois, como observa Italo Moriconi, sua obra faz a ponte entre as instigações pop-contraculturais e "malditas" ou "marginais" dos anos 70 e a pasteurização juvenil e mística dos 90, passando pela disseminação nos 80 dos modelos baseados na literatura policial. "Caio Fernando enfrentou tais fantasmas da única maneira que o artista competente e antenado com seu tempo pode fazer: incorporando-os e transcendendo-os em seu próprio texto." Assim, o flerte com a linguagem juvenil está em Morangos Mofados. E a estrutura policial misturada ao místico aparece em Onde Andará Dulce Veiga?. Aos poucos, sua obra vence fronteiras e, em 1991, Os Dragões Não Conhecem o Paraíso ganha versão em inglês e francês. A descoberta abre-lhe as portas da Europa, especialmente a França, para onde o escritor viajou em 1992, graças a uma bolsa concedida por uma instituição daquele país. No ano seguinte, voltou ao continente europeu, onde fez leituras na Alemanha e Holanda, além de participar de um Congresso Internacional sobre Literatura e Homossexualidade. O ano de 1994 torna-se decisivo em sua vida - a descoberta de ser portador do vírus da aids coincide com a consagração no Salão do Livro de Paris, evento que louva sua obra com o lançamento de três livros: o romance Dulce Veiga, a noveleta Bem Longe de Marienbad (escrita durante o período da bolsa francesa) e L´Autre Voix, coletânea de contos. Assume um novo compromisso particular, que é o de continuar criando mesmo vivendo o drama da morte anunciada. Adoecido, ele voltou a Porto Alegre (que tratava jocosamente por Gay Port), onde enfrentou a doença corajosamente ("barganho com Deus o tempo todo pedindo tempo para escrever pelo menos mais uns seis livros"), até morrer em fevereiro de 1996. Seu fim assemelha-se ao de outros poetas, como Cazuza e Renato Russo, apontados por Moriconi como almas gêmeas de Caio em matéria de destino e expressão artística. Apesar do doloroso fim, o testamento de Caio Fernando Abreu não exibe um tom claustrofóbico, mas pleno de vida. Sua escrita, lembra Moriconi, ficcional ou não, lembra "o girassol a buscar o facho de luz renovadora, nutritiva, de dentro da noite mais escura do ser puramente material, corporal. O ser puramente material é cego e não tem nome".

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