Livro traz a história trágica do Timor

Rosely Forganes lança seu livro sobre a destruição e o renascimento do Timor Leste, Queimado Queimado, mas agora Nosso!, com pré-estréia do documentário de Lucélia Santos

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Por Agencia Estado
Atualização:

Jornalistas costumam ter obsessões. Em correspondentes internacionais, elas se manifestam, muitas vezes, na forma de países. Pode ser Bolívia, Belize, Botsuana. No caso de Rosely Forganes, correspondente em Paris da Rádio Eldorado, a fixação se chama Birmânia. Mas, de repente, está para surgir um novo país na Ásia: e Rosely parte para cobrir, apesar de todas as dificuldades, os primeiros dias que se seguiram à destruição do Timor Leste pelas milícias patrocinadas pela Indonésia (que, segundo todos os relatos, também participou ativamente com forças regulares). Rosely lança nesta terça-feira em São Paulo Queimado Queimado, mas agora Nosso! (Labortexto, 508 págs., R$ 49), a partir das 21h30, no Espaço Unibanco (Rua Augusta, 1.475, em São Paulo), com uma sessão de pré-estréia na cidade de Timor Lorosae - O Massacre Que o Mundo não Viu, documentário dirigido por Lucélia Santos. "Dili cheira a queimado, morte e destruição." A frase que abre seu livro merece ser repetida porque foge ao clichê dos livros-reportagem, que têm por hábito começarem com descrições de cenas vividas por indivíduos - às vezes chamados insensivelmente apenas de "personagens". Quando começa dizendo "Dili cheira a queimado, morte e destruição", Rosely se coloca exatamente onde se espera que um correspondente o faça. Parece fazer um giro de 360º e, diante de tanta cinza, corpos e choros, de ver tudo aquilo, mostra-se capaz de expressar a sensação que domina o ambiente e que não é visual. Evita também o recurso fácil de começar com o drama de um ou outro timorense - que não se igualaria, por paradoxal que possa parecer, ao drama dos timorenses, assim, no plural: estima-se que 60 mil morreram durante a ocupação pelo Japão durante a 2.ª Guerra Mundial, e 200 mil nos 25 anos de dominação indonésia. Dili cheirava a queimado, morte e destruição no começo de 1999, quando Rosely desembarcou em Dili. Em 30 de agosto, a ONU havia organizado um plebiscito para que os timorenses decidissem se a ex-colônia portuguesa na Ásia (invadida pela Indonésia após a Revolução dos Cravos, em Portugal, nos anos 70). Apesar de todas as ameaças, 78,5% da população escolheu a independência. Os indonésios, então, partiram para uma política de terra-arrasada, combinação de saques, massacres, fogo. "Acompanhei o nascimento de um país a partir de sua destruição total", diz Rosely. Ela que recebeu, no ano passado, o prêmio Vladimir Herzog de Jornalismo e Direitos Humanos pelos programas Vozes do Timor - o livro traz a íntegra dessa série feita para a rádio, em um CD. "Nenhum prêmio teria mais valor para mim que esse", afirma ela. Nos primeiros meses após o plebiscito, Dili, a capital do Timor, era um cidade absolutamente precária e perigosa. Além de faltar tudo - luz, água, comida, etc. -, as milícias indonésias ainda assustavam a população, os jornalistas e seus guias. Rosely teve de recorrer ao telefone dos bombeiros portugueses para mandar boletins de Dili. Boa parte de seu livro narra algumas das dificuldades que enfrentou para produzir notícias e reportagens para a rádio. Como, por exemplo, atravessar a cidade na garupa de uma moto no começo da noite (corria um boato de que as milícias haviam preparado armadilhas contra motoqueiros), depois de uma tensa transmissão para o Brasil, esperada não apenas por seus colegas da rádio, mas também pelos ouvintes, que haviam sido informados de que a jornalista estava desaparecida no Timor Leste. Novos cheiros - Rosely esteve no Timor em todos os anos, desde 1999. "A maior parte dos livros sobre o país, escritos por meus colegas portugueses, retrata a destruição, o plebiscito a guerra; quis fazer um livro que tratasse também da reconstrução, não só física, daquela sociedade", conta ela. Uma reconstrução - talvez o melhor fosse falar em construção, afinal o Timor não era independente - do país passou e ainda passa pela discussão da identidade nacional, da língua, do retorno dos refugiados às casas totalmente destruídas. "Não consigo deixar um país destruído e virar as costas; precisava voltar", diz a autora. O livro segue uma ordem cronológica. A primeira parte narra o que Rosely encontrou em 1999 e começa com a frase já por demais citada neste texto. A segunda parte refere-se ao ano 2000. O primeiro capítulo, datado de agosto, avisa que a cidade está cheia, principalmente de vendedores ambulantes, mas que a reconstrução física mal começou. "Desta vez", escreve Rosely, "o risco não é de levar um tiro, mas de ser atropelada." E completa: "Em qualquer outro lugar, seria apenas o horrível barulho do trânsito. Aqui é o som da vida que volta numa cidade que pode cheirar a fumaça, mas não cheira mais a queimado." A terceira e última parte, relacionada ao ano de 2001, começa assim: "Dili hoje cheira a poluição. Há cada vez mais carros e motos nas ruas, a maioria velhos, em mal estado, queimando óleo, gasolina e com motor dois tempos. Mas pela primeira vez, andando à noite, sinto o cheiro de flores (...). Como estive outras vezes aqui na mesma época, passei pelos mesmos lugares, me pergunto onde estavam essas flores antes." Mas não se conta a história de um país que nasce apenas por meio de seus cheiros. O livro de Rosely é precioso porque conta a trajetória de homens e mulheres e crianças que participaram da reconstrução. Dos guerrilheiros que resistiram às provocações da Indonésia, da senhora que cuidou do convento que abrigava os jornalistas, de dona Manoela, de dona Filomena, do lingüista australiano que defendeu a adoção da língua portuguesa como oficial, do emocionante retorno do líder Xanana Gusmão, das articulações de Ramos Horta (que foi também cronista da "Rádio Eldorado", durante o exílio) e do bispo Ximenes Belo das primeiras reuniões do Conselho Nacional da Resistência Timorense em Dili, da atuação de militares de todo o mundo na garantia da paz após a guerra, dos voluntários brasileiros que foram ensinar profissões aos timorenses. É um registro fantástico de um momento histórico, um livro que certamente ficará para a sempre na estante dos clássicos do Timor Leste. Tudo isso numa linguagem clara, que faz o leitor praticamente esquecer que o livro tem mais de 500 páginas. Faltou, até agora, explicar porque o livro se chama Queimado Queimado, mas agora Nosso! A expressão, ouvida diversas vezes por Rosely no país, mistura português com a língua nacional do Timor, o tétum. No começo, a jornalista achou que ela reproduzia a estrutura do indonésio, em que o plural se faz pela repetição das palavras. O uso do plural poderia, assim, ser uma forma de reforçar o desastre. Conversando com o reitor da Universidade do Timor, o lingüista Benjamim Corte Real, Rosely soube que a repetição tem outro significado: que o segundo queimado representa a aceitação de um fato consumado ("Queimado, que se pode fazer") - e que a expressão mostra que destruição pela chamas tem importância menor que o fato de o país ser agora livre.

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