Livro reúne cartas de Clarice e Sabino quando jovens

Correspondência trocada entre 1946 e 1969 revela as aflições, inseguranças e abatimentos de dois dos principais autores brasileiros do século 20

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Por Agencia Estado
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O livro Cartas perto do Coração reúne a correspondência que os jovens Fernando Sabino e Clarice Lispector trocaram entre 1946 e 1969. Enquanto Sabino lutava para escrever, e escrevia seu célebre romance O Encontro Marcado, Clarice enfrentava seus primeiros livros, entre eles A Maçã no Escuro. Para além das curiosidades biográficas, que não são muitas já que os dois se tratam sempre de modo informal, mas discreto, a correspondência serve, sobretudo, como um instrumento de acesso aos tempos de formação de dois dos mais importantes escritores brasileiros do século 20. Insegurança, dúvidas, auto-recriminação, abatimento, suspeita são alguns dos elementos que se repetem, às vezes com intensidade atroz ? e o leitor de hoje ficará se perguntando como, apesar de tanta turbulência, eles conseguiram levar seus projetos a termo. Depois de ler uma crítica nada favorável de Álvaro Lins, que classifica seus primeiros romances de "mutilados e incompletos", Clarice, apreensiva, escrevendo para Fernando, se purga: "Tudo o que ele diz é verdade. Não se pode fazer arte só porque se tem um temperamento infeliz e doidinho." Na carta seguinte, Fernando a consola: "Digo apenas que não concordo com você. (...) Já te disse que você avançou na frente de todos nós." Quanto a Lins, Sabino não mede as palavras: "Álvaro Lins é um cretino." Alguns parágrafos antes, o escritor se punha a meditar sobre a insegurança que atormenta a ambos, buscando uma explicação que inclua a literatura: "A gente se angustia é por não saber intimamente o que está fazendo." Em nova carta, Clarice continua a desabafar: "Não trabalho mais, Fernando. Passo os dias procurando enganar minha angústia e procurando não fazer horror a mim mesma." Ela se sente presa no que chama de "vida íntima, a um ponto de não ter nenhum sinal exterior". A solidão, o isolamento, a incomunicabilidade são elementos que perpassarão toda a obra de Clarice. "Interrompi mesmo o trabalho, minha impressão é de que é para sempre", afirma. Em sua resposta, Sabino tenta consolá-la: "A arte não nos satisfaz porque não passa disso: é o testemunho de nós mesmos." E diz que é horrível ver a amiga presa "num círculo de giz". Numa carta seguinte, Clarice volta a ser muito rude consigo: "Estou vendo que não disse nada, que não é nada disso, e estou vendo que estou bastante perdidinha." Naquele momento, cheia de dúvidas, ela trabalha em seu famoso conto O Crime do Professor de Matemática. "Estou sempre errando", tortura-se. Na carta seguinte, fazendo coro com as lamentações de Clarice, é a vez de Fernando Sabino dizer: "Tudo o que tenho feito cada vez corresponde menos ao que eu queria fazer." Vivendo em Nova York, a solidão agrava a imagem negativa que o escritor tem de si. "Fernando Sabino é realmente um ser de comovente estupidez: no Brasil, tinha casa, amigos, emprego melhor, automóvel (se bem que...), chope no Alcazar...", escreve. Angústia ? Meditando sobre a angústia, em outra carta, Clarice conclui: "A explicação é que me falta realidade." Confessa que está rascunhando uma tragédia, ao estilo da Idade Média e, solene, se admoesta: "Em verdade vos digo, é uma coisa horrível. Mas tive tanta vontade de fazer que fiz contra mim." Comentando a confidência da amiga, Fernando Sabino sugere: "Desconfio que será uma trilogia, nem trágica nem triste, mas certa, exata e indispensável como são esses livros que a gente escreve para desmoralizar nossa própria necessidade de escrever." E, num esforço para quebrar a tensão, fala de um projeto, a que chama de Aprendiz de Feiticeiro, no qual esboça uma divertida e debochada classificação dos escritores. Diagnostica a existência, por exemplo, dos "que começam e acabam" (José Lins do Rego), "os que acabam e não começam" (Cyro dos Anjos), "os que começam mas não acabam" (Otávio de Faria) e "os que nem começam e nem acabam" (Lúcio Cardoso). E assim alivia a própria aflição. Vivendo em Berna, onde seu marido, Maury Gurgel Valente, exerce cargo diplomático, Clarice tem a chance de viajar pela Europa. De volta de uma visita à França, escreve: "Tive um verdadeiro cansaço em Paris de gente inteligente. Não se pode ir a um teatro sem precisar dizer se gostou ou não, e porque sim e porque não." Depois de ler os diários do escritor francês Julien Green, ela comenta: "Em muita coisa me sinto tão parecida com ele (...) e, ao mesmo tempo que me dá uma sensação muito boa de comunicação, me dá uma sensação intolerável de prisão, como cada vez que sou compreendida." Já instalado novamente no Rio de Janeiro, Sabino compartilha com a amiga esse sentimento e manifesta sua repulsa aos conselhos dados por outros escritores: "Gide aconselhou que a gente começasse a escrever uma frase sem saber como iria acabá-la, para maior vivacidade do estilo: fui seguir o conselho e hoje em dia sempre que começo uma frase acabo não sabendo mesmo como deve ser terminada", confessa. Já vivendo agora em Washington, para onde o marido foi transferido, Clarice fala de suas dificuldades para aderir ao american way of life. E descreve assim o estado de introspecção em que a distância a meteu: "Passo o tempo todo pensando ? não raciocinando, não meditando ? mas pensando, pensando sem parar. E aprendendo, não sei o quê, mas aprendendo." Em sua resposta, Fernando Sabino descreve um estado de melancolia muito parecido: "Estou ficando vago, e ultimamente ando cada vez mais tolerante com a vaguidão das palavras." Cada um em seu estilo, descrevem um mesmo desalento, que se intensifica nos intervalos da criação. Competição ? Depois de ler os originais dos contos de Clarice que viriam a compor A Imitação da Rosa, Sabino, deslumbrado com o que leu, mas sem dissimular a inveja, diz: "A primeira sensação foi de desânimo. Ora, eis que estou empenhado em escrever um romance importantíssimo para mim, mas impiedosamente limitado como realização artística e ? o que é pior ? desgraçadamente penoso de ser escrito. E me vem você com esses contos, dizendo, como quem não quer nada, tudo aquilo que eu pretendia dizer um dia." E, para que se veja que a competição não afeta sua amizade, tempos depois Fernando Sabino se empenhará, com esmero, em ajudar Clarice na releitura dos originais de A Maçã no Escuro ? que ainda se chamava, a essa altura, A Veia no Pulso. Nas cartas que trocam a respeito, cheio de cuidados, ele elabora numa longa lista de sugestões de mudanças, que ocupam 29 páginas da correspondência entre os dois. Clarice, desanimada, esforça-se para seguir os conselhos do amigo. "Comecei a revê-lo. (...) Não sei como você teve paciência com ele. Estou com pouca, ele é descosido, e tão mal escrito que muitas vezes não dá jeito de consertar", recrimina-se. Ao receber a versão corrigida do romance, é a vez de Sabino se lamuriar: "Fiquei encabulado de ver que você seguiu ao pé da letra demais as minhas sugestões", diz. Tempos depois, lendo os originais de O Encontro Marcado, de Sabino, uma perplexa Clarice admite: "Perguntei-me de início aonde você pretendia levar o leitor e me levar." Mas se pergunta ainda: "O fato de você ter escrito este livro e eu ter escrito o meu, não é o começo da maturidade?" Fernando Sabino responde: "Você pode calcular o que representa este livro para mim, como ´purgação´ ? motivo evidente de ordem extraliterária, mas necessário para que eu me sinta daqui por diante capaz de escrever sobre o que quiser." Apesar da intimidade cada vez maior, os dois estão sempre cheios de cuidados. "Eu devo ter me exprimido mal quando disse que preferia não ter sido você a pessoa capaz de escrever esse livro", penitencia-se Clarice numa carta posterior. "O que eu queria exatamente dizer é que o livro é doloroso, o livro dói, e eu queria que você não tivesse sido a pessoa que sentiu tudo o que sentiu." Afastada essa dúvida, Clarice pode dizer: "Só posso lhe dizer uma coisa, Fernando: o livro que você escreveu pareceu me libertar mais do que o livro que eu própria escrevi." O que pode parecer só uma troca de frívolas gentilezas é, na verdade, a manifestação de uma sólida e fecunda cumplicidade. Cartas Perto do Coração. Editora Record, 222 págs., R$ 20

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