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Livro reconstrói trajetória da artista Anita Malfatti

'Anita Malfatti: Tomei a Liberdade de Pintar a Meu Modo' é baseado em pesquisas e análises sobre a artista

Por Maria Hirszman
Atualização:

Há 90 anos, Anita Malfatti inaugurava a célebre exposição na Rua Líbero Badaró. Além de ser considerada uma das mais prováveis datas de "nascimento" do movimento modernista no Brasil - rivalizando com outros eventos como a mostra do lituano Lasar Segall em 1913 ou a barulhenta Semana de Arte Moderna, em 1922 (da qual Anita também participou) -, a exposição de dezembro de 1917 é sempre apontada como momento áureo da artista e entendida como espécie de ponto de síntese no qual se afirma ao mesmo tempo sua ascensão e queda como pioneira da arte de vanguarda no País. E reiteradas vezes serviu de gancho para a realização de eventos e exposições com o objetivo de avançar mais na compreensão do modernismo nacional e do papel central desempenhado pela pintora nesse processo. Este ano, as rememorações reduziram-se à publicação do livro Anita Malfatti: Tomei a Liberdade de Pintar a Meu Modo, projeto desenvolvido nos últimos anos por Luzia Portinari Greggio.   Veja também: Galeria de fotos Anita Malfatti   Obra de divulgação que se apóia fortemente na importante pesquisa desenvolvida ao longo de 40 anos sobre a trajetória e a obra da artista por Marta Rossetti Batista (1941-2007) - agraciada este ano com o prêmio Jabuti in memoriam para a melhor obra biográfica -, o recente lançamento procura perfazer em imagens e texto a história de Anita, escapando das interpretações reducionistas que pintam a artista como uma figura frágil, que se apaga diante da primeira crítica contundente. Certa de que muitos fatores contribuíram para determinar a trajetória da pintora, Luzia considera que um dos aspectos mais determinantes dessa história é a forte e permanente dependência da pintora, seja em relação à família, ao Estado, ou à clientela (alunas e encomendas). "A necessidade de ganhar a vida por certo norteou suas vacilações e sua procura constante, considerando principalmente a realidade do mercado de arte e o ambiente cultural no Brasil na época", acrescenta.   É verdade que após exibir em 1917 obras extremamente ousadas para o provincianismo paulistano, como O Farol e O Homem Amarelo -, levando Monteiro Lobato a chamar o que ela fazia de "impressionismo discutibilíssimo" e de "obra torcida para a má direção" -, ela reflui, não dá continuidade ao ímpeto transformador dos primeiros anos. A sociedade também não parecia pronta para aquelas obras "dantescas" (de acordo com as palavras de seu próprio tio e patrono). Mas reduzir a questão a um drama pessoal como recorrentemente se faz ao falar de Anita, talvez pelo fascínio despertado por sua biografia, tira a questão do campo que mais interessa: o do embate entre as possibilidades reais de desenvolvimento local de uma arte segundo os preceitos de vanguarda já largamente explorados na Europa.   Partindo da segmentação proposta por Marta Rosseti de divisão da produção de Anita em três fases (desenvolvimento de uma linguagem expressionista própria e moderna entre 1910 e 1917; período de dúvidas e produção irregular a partir de 1918 e finalmente pacificação com a inauguração de uma fase ingênua, próxima a um primitivismo a partir da década de 50), o livro privilegia a imagem em relação ao texto; procura deixar às telas a tarefa de elucidar as várias forças em jogo na produção da artista, recorrendo quando necessário aos depoimentos da própria artista e de seu grande interlocutor, Mário de Andrade.   Uma das cartas que lhe escreveu o poeta, pouco antes de eles romperem, em 1940, parece sintetizar de maneira muito clara as forças opostas em jogo na arte de Anita, o embate entre o desejo de fazer uma arte bela, compreensível e em profunda sintonia com a tradição local, e ao mesmo tempo o anseio - cada vez mais contido, diga-se de passagem - de dar plena vazão ao impulso criativo: "Você fala que o artista é apenas um transmissor de beleza e que, desejava ter um Debret ou um Rugendas em casa pois está ‘querendo fazer um quadro com o sabor daquela gente’, como você mesma diz. Ora eu não concordo com isso, Anita. O artista não é o ‘transmissor’ de beleza, é criador. (...) Me parece que você se dispersa um pouco no meio desses conhecimentos. Quero dizer: em vez de fazer por si, você se propõe a fazer o que conhece. Faz e faz com muita habilidade, mas não é você e não é ninguém."   Dedicando-se desde 2001 ao estudo da obra de Anita, primeiro com a realização de um documentário e agora com a publicação do livro, Luzia Greggio dá espaço não apenas à obra "criadora", enaltecida por Andrade, mas às "trasmissões de beleza", aos arranjos de flores e cenas rurais que ela compôs nas últimas décadas de vida. Permite que o próprio leitor conheça e admire lado a lado as desigualdades, contradições e forças dessa produção.   Finalmente, numa espécie de adendo pouco atrativo para o leitor comum, analisa a questão das assinaturas da artista. E também abre um pequeno, mas interessante, espaço de inversão da tradicional maneira de se olhar para a artista. Em vez de buscar entender os refluxos de sua vida pessoal (problema na mão direita, repressão social e familiar, dificuldades financeiras...) na sua obra, ela parte da própria pintura de Anita na tentativa de compreender melhor sua maneira de se colocar no mundo, em um pequeno segmento intitulado "auto-retratos" (algo raro em sua produção). De forma sucinta, procura desvendar aspectos da artista corporificados em telas como Estudante Russa, Nu Feminino e Natureza Morta com Espelho. Esta última mostrando apenas a mão defeituosa camuflada e a esquerda movendo o pincel para pintar a natureza-morta. "Assim, Anita espia e encara o espectador, num confronto disfarçado", conclui a autora.

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