Livro premiado traz memória uruguaia

A Árvore das Estrelas Vermelhas, de Tessa Bridal O romance mostra a trajetória de uma jovem descendente de tradicional família de Montevidéu, que se engaja nos pelotões clandestinos dos tupamaros

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Por Agencia Estado
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No instante máximo de um discurso hoje célebre, Gabriel García Márquez sapecou para a platéia de europeus que o via receber o Nobel, em 1982, que é impossível enxergar a realidade latino-americana com olhos estrangeiros. A vida na América Latina, disse Márquez, é mais surrealista que cartesiana e é quase inevitável à ótica gringa engaiolar os latinos numa fôrma que não lhes cabe. A uruguaia Tessa Bridal mora há 20 anos nos Estados Unidos. É diretora de programas públicos do Science Museum de Minnesota. Casada. Duas filhas. Aprendeu a saborear seu verão de primeiro mundo, enquanto observava, de longe, o "inverno sombrio" das ditaduras da América Latina. Foi com indignação que Bridal viu os anos de chumbo do Uruguai. Indignada, viu esse mesmo passado ser tratado aos poucos como página virada e os crimes militares, deixados de lado, em troca de uma abertura política sem sobressaltos. Sua resposta veio em livro. A Árvore das Estrelas Vermelhas (The Tree of Red Stars) é uma ficção terna e politizada. Olhar uruguaio, de quem é de dentro, mas também um olhar de fora de quem não vive perto. O livro ganhou prêmio nos EUA no ano de seu lançamento - o Milkweed de ficção de 1997 - e teve relativa repercussão como literatura memorialista e política antes de chegar ao Brasil, há pouco, pela Editora Record e versão de Lourdes Menegale. Qualidades - O romance mostra a trajetória de Magdalena, a jovem descendente de tradicional família de Montevidéu, que se engaja nos pelotões clandestinos dos tupamaros. Bridal tem uma mão habilidosa para caracterização de personagens e sua reconstituição de época e de lugares chega a ser rigorosa - o Uruguai dos anos 50 aos 70, os Estados Unidos da era de ouro, a Europa pré-queda-do-muro. Bridal escapa de boa parte das armadilhas de uma estréia. Seus personagens, carne, osso e sangue, estão longe de ser planificados ou só funcionais. Cada um respira em compasso próprio e ao compasso da narrativa. O cotidiano uruguaio é sorvido com calma, certo refinamento e uma riqueza de detalhes, em cada cena, impensável para quem não fosse uruguaio da gema. A eficiência narrativa da autora é particularmente aguda na descrição da infância moleca e mimada da protagonista. Magda criança era o que um alagoano chamaria de "os pés do cão" - peralta, inquieta, cheia de travessuras e tipos pitorescos para lembrar. Bridal dedica à infância de Magda páginas de deleite, com o que prepara terreno para os saltos narrativos que se seguem. A história revela sua força, então, nos ritos de passagem da personagem e é com tranqüilidade que as inquietações de menina reverberam em questionamento de mundo, num momento, e no engajamento político, no seguinte - o da perda da inocência de Magdalena até seu exílio no exterior. Problemas - Mas a ambição de estreante trai, pelo excesso, o olhar uruguaio. Há na narrativa de Bridal uma hesitação de origem, entre a voz que é intestina à sua história, decorrência direta de sua familiaridade com a paisagem uruguaia, e um didatismo de esquerda que é alheio a essa mesma mirada. Por vezes, o ritmo de cenas inteiras é desviado pela discurseira meia-oito. Um hilário grupo de tias velhas tricotam fofocas por toda a história. De repente, saltam do nada comentários de duvidosa consciência de classe. O recurso soa forçado, quando não explicitamente manipulativo. Como quando um casal de presos políticos é separado minutos depois de sua improvável cerimônia de casamento, realizada nos porões da tortura - suas mãos se procuram no vazio, enquanto milicos arrastam os dois para celas diferentes. O maior sinal da hesitação narrativa de Bridal talvez seja sua ambição totalizante. A autora várias vezes é tentada a dar sínteses do Uruguai, sua história, origem e cultura. Há momentos em que o livro parece feito para ser a chave de uma geração ou de todo um país. O efeito, na prática, é flagrar traduções da cultura local típicas de rodapés para turista. Fosse um romance brasileiro e a narrativa seria suspensa aqui e ali para, por exemplo, explicar as raízes dos desfiles da Sapucaí. Por isso, é que As Árvores das Estrelas Vermelhas se constrói sobre a vitalidade, quase infantil, de uma narrativa com cor uruguaia e o apelo retórico de um olhar de fora, a edulcorar um país com problemas e contextos muito parecidos com os do Brasil. No fundo, o livro de Bridal se revela o relato de quem pressente que, ser estrangeiro em qualquer país, o próprio ou dos outros, não é uma condição tão estranha assim para os latinos. Mesmo os que, ao querer defendê-lo, também dele se afastam. A Árvore das Estrelas Vermelhas, de Tessa Bridal. Editora Record, 301 páginas, R$ 29

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