Reza a lenda que o grande lampejo de Luiz Gonzaga aconteceu na zona. O sanfoneiro mudara-se para o Rio, em 1939, visando a seguir carreira de músico. E como todo recém-chegado, esforçava-se para esconder os traços matutos. Vestia-se como os malandros do Mangue, o bairro quente da capital, onde tocava com frequência, e praticava arduamente o sotaque carioca, a fim de aniquilar o nordestino. Entretanto, um grupo de estudantes cearenses, frequentadores de um dos bares do Mangue, notou o sotaque sertanejo na forma com que o futuro mestre tocava as valsas e tangos da moda. Pediram-lhe que tocasse alguma coisa "lá do Norte", e o músico, instigado e encabulado, ao mesmo tempo, resolveu emendar, em sua apresentação seguinte, duas composições que lembrava de sua infância. Pé de Serra e Vira e Mexe, dois dos clássicos de sua discografia instrumental, relíquias de sua infância em Pernambuco, tempo em que acompanhava seu pai, foram o estopim. A casa veio a baixo. "Peguei o pires (para recolher as moedas)", disse Luiz. "Na terceira mesa, o pires já estava cheio. Aí eu gritei: 'Me dá um prato!' Daqui a pouco o prato estava cheio. Aí pedi uma bandeja. E pensei: agora a coisa vai."O depoimento é citado no prefácio do novo livro Tem Sanfona no Choro, organizado pelo músico Marcelo Caldi e lançado pelo Instituo Moreira Salles. Tem Sanfona no Choro ilustra, através de partituras e um ensaio de Fernando Gasparini, a conexão entre o choro na produção de Luiz Gonzaga. As partituras são completas com cifras, e acompanham um CD, em que Caldi toca algumas composições. O ensaio discute a importância do choro nos primeiros anos de gravação, antes do sanfoneiro decidir lançar-se como cantor e alcançar o sucesso com Asa Branca e outras. No início dos anos 40, sua eureca boêmia desencadeou uma série de conquistas - gravações de rádio, uma vitória no programa de talentos de Ary Barroso - e, por fim, fez o músico compreender tanto a riqueza de sua herança quanto o valor de sua arte tinha para milhões de migrantes nordestinos, que se lembravam da terrinha ao ouvir suas gravações. Mas a transformação de Luiz Gonzaga em Rei do Baião se daria mais tarde. As composições transcritas ressaltam o talento como compositor e o brilho virtuosístico de Luiz Gonzaga. Ouça a gravação original, por exemplo, da mazurca Véspera de São João. Trata-se de seu primeiro lançamento, mas a maturidade completa do instrumentista já havia sido alcançada. Os floreiros virtuosísticos e a estrutura de choro da peça ilustram a proximidade que o Rei do Baião tinha com o gênero instrumental. "A magia de Gonzaga foi traduzir para a urbanidade o sotaque e as melodias desse pequeno instrumento de recursos limitados, mas tão criativamente explorado pelos que fazem a festa nos bailes e forrós na roça. Como gênero tipicamente urbano, o choro, por sua vez, encontra na sanfona uma forma de se expandir para as paisagens rurais", escreve Gasparini. Essa expansão se dá, nitidamente, em Vira e Mexe, composição tradicional, meio maxixe, quase baião, de cunho virtuosístico, com a qual Gonzagão chamou a atenção do público no bar do Mangue. Na época, início dos anos 40, o choro vivia sua fase áurea. Pixinguinha já era santo entre os músicos e conjuntos como o histórico regional de Canhoto acompanhavam os cantores da gravadora RCA/Victor. Assim, sua proximidade com os craques do gênero se deu no estúdio. Dino 7 Cordas e Meira, dois dos mestres do violão brasileiro, já integravam o regional e foram incumbidos de acompanhar o pernambucano. A amizade veio fácil. Meira, por exemplo, também era de Pernambuco e se identificava com o sanfoneiro de origem humilde. "Podemos assim imaginar o ambiente criativo e alegre instaurado a partir do encontro do sanfoneiro com a fina flor do choro carioca; e quanto isso contribuiu para a gestação e o nascimento do baião. O choro foi, de fato, o berço que recebeu a sanfona nordestina no Rio, o portal sonoro que ofereceu as condições para Luiz Gonzaga desenvolver e expressar a sua genialidade. Enquanto gênero urbano, o baião nasceu ao lado de cavacos, bandolins e flautas e se criou no ambiente e no convívio com os chorões", escreve Gasparini. As composições instrumentais de Luiz Gonzaga não dividem sucesso de sua obra cantada. Mas a importância dessas peças e gravações para a evolução da sanfona na música brasileira é seminal. Sem o sotaque nordestino dos choros de Luiz Gonzaga, não haveria, por exemplo, Sivuca ou Hermeto Pascoal, os dois grandes discípulos do sanfoneiro de Exu.