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Livro flagra a paranóia por segurança

Menalton Braff mostra coragem cada vez mais rara aos romancistas de hoje ao abordar a vida pelo prisma social e econômico. Em Castelos de Papel, ele flagra os ricos em seu desespero sem causa por uma segurança impossível

Por Agencia Estado
Atualização:

O que teme Alberto, o personagem central do romance Castelos de Papel (Nova Fronteira, 144 págs., R$ 20), de Menalton Braff? O mundo, os pobres, a violência ou o fim do teatro em que se meteu? Antes, vamos apresentá-lo. Alberto é um empresário aposentado que, aos domingos, almoça com toda a família e leva os netos a um parque onde tem o enorme prazer de lhes pagar sorvetes à vontade - o sorvete, esse símbolo da extravagância, que, coincidência ou não, marcou a vida de Lula (seu pai, depois de comprar picolés para os filhos de um novo casamento, disse ao menino que hoje é presidente que ele não precisava de sorvete, porque não sabia o gosto e, portanto, não sentiria falta). Pois é justamente sentindo esse prazer, o de poder pagar as extravagâncias dos netos - e se negar a apoiar as do filho -, que Alberto sente medo. Nos olhos do sorveteiro, sente uma recriminação por seu gesto, por seu orgulho e por sua segurança de brigador. Sente sintomas que lembram a síndrome do pânico, embora a doença não seja nominada na obra. E, a partir de uma notícia de jornal, que informa do seqüestro de outro empresário, decide tomar suas precauções, contrata uma empresa de segurança e transforma sua casa num verdadeiro bunker. Também resolve, por sugestão de sua mulher, Sílvia, investigar seus possíveis inimigos: corre ao arquivo morto da empresa, a Vergueiro, e passa a analisar ficha por ficha dos ex-funcionários. Do ponto de vista concreto, a busca é inútil, mas ela serve para revelar fantasmas do personagem - como o telefonema anônimo em que denunciou um concorrente de manter em casa um foragido político, um furto forjado que levou outro colega ao suicídio e, ainda, uma certa tensão sexual reprimida, por conveniência (Alberto se casou com a filha do dono da Vergueiro), em relação à secretária. Menalton, nas conversas da família, abandona um pouco o romance e utiliza-se de sinais e marcações típicos dos diálogos teatrais. Há um sentido nisso: as conversas são jogos de cena, em que os familiares não são, apenas atuam. Não por acaso, é nesse momento em que suas características estão mais caricatas, como se fossem tipos - Alberto, por exemplo, é um anticomunista sem argumentos, e seu filho ensaia, sempre sem conseguir, ameaçado pelo pai, arremedos de interpretação sociológica da sociedade. O fato é que há uma distância entre os familiares, que não superam seus "papéis" - a influência da Clarice Lispector de Festa de Família fica bastante evidente nesse momento. (Um problema do romance é que, às vezes, esse "teatro" se espalha pelos momentos da narrativa, e os personagens acabam parecendo antigos, apesar de viverem num tempo de senhas eletrônicas, fax, internet - talvez Menalton tivesse resolvido essa questão escrevendo mais uma cinqüentena de páginas, incutindo mais dúvida, em vez de ficar só na hesitação). Mas voltemos aos temores de Alberto. O que os provoca? Menalton parece acreditar em uma interpretação ligada ao marxismo e à sociologia, e isso é de uma coragem ímpar entre os romancistas de hoje. Em Que Enchente me Carrega?, que, como romance, é mais completo que Castelos de Papel, narrou o que se pode chamar de "triste fim do artesão", por meio de seu personagem Firmino, um homem que recusa a repetição sem sentido da produção em série. Quase nenhum romancista brasileiro, hoje, parece ter coragem de enfrentar algumas das origens dos conflitos humanos, especialmente quando elas passam pelo mundo do trabalho e da produção. Menalton tem, e faz Alberto, um homem que, ao comprar sua primeira bicicleta, teve um prazer enorme de sentir o cheiro da borracha nova do pneu - e saber que, na nota fiscal, aquela máquina tão simples estava em seu nome -, claro, é o seu empresário, seu burguês em franca luta de classes, morrendo de medo de seus funcionários - normalmente sem motivo justo. As fichas que ele analisa pouco lhe dizem, a menos em alguns casos, de pessoas com quem se envolveu mais profundamente - uma história de companheirismo em meio a outros de calhordice. Mas o romance não acaba sem que nós descubramos o que de fato provoca medo na burguesia - ou os ricos, para deixarmos de lado o termo que cada um entende do seu jeito. E acaba bem, bem o suficiente para nos fazer aceitar os defeitos de Castelos de Papel e nos admirarmos das qualidades de um autor que merece ser acompanhado.

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