Livro analisa doutrina política de Flávio Cavalcanti

Nossos Comerciais, Por Favor!, de Lúcia Maciel Barbosa de Oliveira, aponta afinidades entre o conservadorismo do apresentador e a Escola Superior de Guerra

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Por Agencia Estado
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Por que tanto interesse por Flávio Cavalcanti (1923-1986)? A historiadora Lúcia Maciel Barbosa de Oliveira, autora de Nossos Comerciais, por Favor! - A Televisão Brasileira e a Escola Superior de Guerra: o Caso Flávio Cavalcanti (Beca, 144 págs., R$ 25), afirma estar surpresa com a quantidade de ligações que tem recebido para falar do livro (cujo título se apropria de um dos bordões de Cavalcanti) e das mensagens por e-mail que comentam a obra. "Acho que há uma certa nostalgia, vontade de recuperar um personagem que marcou uma geração, um lado saudosista, sem muito juízo de valor." O trabalho de Lúcia, defendido como dissertação de mestrado na Escola de Comunicações e Artes (Universidade de São Paulo), nasceu da dúvida sobre as relações entre o apresentador-símbolo da televisão nos anos 70 e a doutrina política que orientou o regime militar, elaborada na Escola Superior de Guerra. "É uma relação óbvia", afirma ela, antes de completar: "Embora muita gente só a tenha percebido depois de ler o livro." Para Lúcia, o apresentador do Noite de Gala, Um Instante, Maestro e, depois, do Programa Flávio Cavalcanti, sucesso nos anos 70 na Tupi, que levou a Globo a criar o Fantástico para enfrentá-lo, revelava afinidades com o projeto de país e de sociedade defendidos pelos militares: "Um universo de valores extremamente conservador, de linhagem cristã-ocidental, que tem na família, na pátria, na propriedade, na religião, na moral e nos bons costumes os pilares da ordem social, assim como a crença na unidade, homogeneidade, ausência de conflitos e conciliação", escreve a historiadora. Nas posições de Cavalcanti e nas da ESG, não há muita novidade. O próprio filho do apresentador, Flávio Cavalcanti Jr., declarou que o pai era de fato conservador e não via com bons olhos as mudanças de comportamento dos anos 60 e 70. Mas também afirma que ele não tinha nenhuma ligação formal com a ESG. É também isso que mostra o trabalho de Lúcia Maciel. Como o uso dos meios de comunicação como fator de integração nacional fazia parte do projeto da ESG, ela foi à escola militar para verificar se Flávio Cavalcanti esteve lá, em conferências, palestras, aulas ou encontros. Não encontrou nenhuma referência. Nem por isso a aproximação intelectual entre os dois pode ser negada. Porque, como defende Lúcia, há uma circularidade de valores pelos diferentes meios sociais. Isso significa que, se Flávio Cavalcanti e outros apresentadores de TV que seguiram seu estilo não eram "braços do poder", tinham valores parecidos com ele, o que os fazia defender as mesmas idéias. Cavalcanti, por exemplo, fez uma interpretação semiótica da música Alegria, Alegria, de Caetano Veloso, que ficou famosa: ele encontrou no verso "Sem lenço, sem documento" as iniciais de L(enço) S(em) D(ocumento), que considerou uma "prova" da apologia ao uso de drogras pelos tropicalistas. Por isso, "quebrou um exemplar do disco que continha tal infâmia", conta o próprio Caetano em Verdade Tropical. Nas palavras do professor da ECA e escritor Teixeira Coelho, a convergência de pontos de vista entre o apresentador e os manuais da ESG estudados por Lúcia não podem ser negados: o que explica "tanto o sucesso de Flávio Cavalcanti quanto a duração" (21 anos, de 1964 a 1985) do regime militar. Também para Teixeira Coelho, Flávio foi uma espécie de "intelectual orgânico da ditadura sem ter assumido a função de ´pau mandado´", o que seria comprovado pelos desentendimentos entre o apresentador e o poder. O público de Flávio Cavalcanti, na época, era formado pelas classes A e B, segundo os dados obtidos por Lúcia - o que também é levado a crer pelas roupas que usava: smoking no Noite de Gala, terno e gravata nos outros programas. "No fundo, os medos, as esperanças e o projeto nacional dessa classe, de Cavalcanti e dos militares são os mesmos." Na década de 70, Cavalcanti atuaria como uma espécie de arauto do governo do general Médici, mesmo tendo tido alguns problemas com o governo e a censura, argumenta. "Flávio sabia o que estava defendendo, até porque os valores que defendia eram coerentes com sua vida privada", continua ela. Isso não o impedia de apresentar casos escabrosos, como o de uma menina de 12 anos que engravidara do padrasto e não conseguia fazer um aborto na rede pública. "Ele expunha os desvios para reafirmar a ordem."

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