Literatura leva multidões a Passo Fundo

Pela capacidade de atrair um grande número de pessoas para discutir livros, as Jornadas Literárias vão concorrer ao Prêmio Multicultural 2001 Estadão Cultura

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Por Agencia Estado
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Uma coisa é organizar encontros com escritores ou feiras de livros com noites de autógrafos. Outra coisa é o que acontece a cada dois anos em Passo Fundo, cidade gaúcha de 166 mil habitantes, situada a cerca de 300 quilômetros de Porto Alegre. O evento, uma idealização da professora Tânia Mariza Kuchenbecker Rösing, do Departamento de Letras do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade de Passo Fundo, recebe o nome de Jornadas Literárias, reúne multidões desde 1981 e é um dos indicados para o Prêmio Multicultural 2001 Estadão Cultura, na categoria de fomentador. Ah, o leitor não está acreditando? Acha que a literatura não é capaz de reunir tanta gente? Pensa que isso é para shows de rock´n´roll ou bailes funk? Então aqui vão os números: para a edição deste ano, que será de 28 a 31 de agosto: estão previstas 4.500 vagas para as mesas-redondas, mais 1.500 vagas para cursos opcionais e ainda mais 1.500 vagas para crianças a cada dia. No mínimo, serão 7.500 pessoas participando do evento. Que ocorre sob a lona de um circo (neste ano, serão duas), porque o ginásio de esportes da cidade não dá conta de um número tal de presentes. Foi essa capacidade de reunir tanta gente para discutir livros que fez do projeto um candidato ideal ao prêmio de fomento cultural do Prêmio Multicultural 2001 Estadão Cultura. "A gente não consegue fazer coisa pequena", afirma Tânia, que faz sempre questão de dizer que representa todos os envolvidos no projeto, que tem um orçamento total de R$ 1,1 milhão. Passo Fundo, que já foi conhecida como a Chicago dos Pampas, um tanto quanto assustada pela turma do bandido Jorge Cabeludo, mudou muito desde que o escritor Josué Guimarães convenceu Tânia a realizar a primeira edição do evento. De 1981 para cá, a cidade ganhou livrarias (são oito agora), a universidade comunitária (mas paga) cresceu, grupos de teatro surgiram, passaram a funcionar dois museus (um histórico e outro de artes, que recebe o nome da artista plástica Ruth Schneider, funcionando no mesmo prédio), e a cada dois anos é organizado um encontro internacional de folclore. Segundo o vice-reitor de extensão universitária da Universidade de Passo Fundo (posto que já foi de Tânia), Jaime Giolo, esse é o projeto da universidade (que tem cerca de 12 mil alunos) com maior alcance social. E também uma espécie de vitrine do trabalho desenvolvido pela UPF. Se Passo Fundo não é o Paraíso na Terra, pelo menos virou - com o perdão do lugar-comum - a Meca dos escritores brasileiros (e também de alguns estrangeiros, como o historiador da leitura canadense Alberto Manguel, que deve estar presente na edição deste ano). A fórmula do sucesso das Jornadas Literárias não é nada mágica, diga-se. Baseia-se num princípio: para participar do encontro com um autor, seja ele o chileno Antonio Skármeta (também confirmado para o evento, como outros 40 autores), seja o brasileiro Alcione Araújo, para citar apenas dois dos mais de 200 escritores que já peregrinaram a Passo Fundo, é preciso discutir suas obras. É um público, portanto, para lá de respeitável. As Jornadas Literárias do próximo agosto, portanto, começam bem antes, em abril (mais informações podem ser obtidas pelos tels. 0--54 316-8368 e 0--54 316-8330 ou pelo e-mail rosing@upf.tche.br). Grupos de leitura são informados sobre os participantes do ano e seus livros são apresentados. Os leitores têm de ler obras do autor em questão e apresentar três relatórios. Só assim (e se a equipe de Tânia não pegar nenhuma cola) é que o inscrito na pré-jornada pode participar das Jornadas. Neste ano, já há 55 grupos formados para as pré-jornadas espalhados por Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Paraná e até São Paulo. Tudo para entrar debaixo da lona de circo. E não é de graça: na edição passada, cada participante independente pagou R$ 50; grupos de dez professores pagaram R$ 200 (R$ 20 cada um). Claro que o escritor chega lá e fica impressionado. Tânia, acompanhada pelas escudeiras Dalva Machado Bisognin e Lurdes Canelles, duas dos oito integrantes da comissão executiva das Jornadas, conta uma série de histórias sobre cada uma das edições. Uma delas reza que o escritor Otto Lara Resende encontrou o ainda desavisado Ignácio de Loyola Brandão, que vinha de um encontro singelo em outra cidade gaúcha, em Porto Alegre. Loyola perguntou o que Otto Lara estava fazendo em Passo Fundo - e Otto Lara brincou: "Escritor que nunca foi a Passo Fundo não é escritor consagrado." Na edição seguinte, Loyola, que reconta essa história sempre que pode, se tornou um escritor consagrado, para não mais deixar de freqüentar as jornadas. Estará lá novamente neste ano e é, com Deonísio da Silva, um dos escritores a quem as organizadoras mais recorrem quando precisam de ajuda. Gutenberg - O tema da 9.ª Jornada Nacional de Literatura (a primeira, em 1981, foi regional), que ocorre neste ano, é 2001 - Uma Jornada na Galáxia de Gutenberg - da Prensa ao e-Book. E ajuda a mostrar a dedicação de Tânia e dos envolvidos nas jornadas. A professora de literatura meteu na cabeça que queria trazer uma réplica da prensa de Gutenberg. Soube de sua existência na Alemanha e foi pedir ajuda. Em Porto Alegre, o Instituto Goethe não se mostrou muito animado com a empreitada - afinal, trazer a réplica significaria seguro, curador, burocracia, projeto de exposição, etc. Ela, então, pediu ajuda à embaixada alemã. Resumindo a história, a réplica estará exposta no prédio que abriga os museus durante a jornada, ao lado de uma exposição sobre a evolução da escrita. "O evento funciona porque o objetivo é nobre, porque sou fanática e porque encontrei gente do mesmo tipo, que não se importa com o cansaço e com o desgaste", afirma Tânia. Dalva, por exemplo, conta que uma vez teve de enfrentar o próprio marido de Tânia, Acioly Rösing, diretor da Faculdade de Economia que não queria que ela liberasse seus alunos para as jornadas. É, ele voltou atrás. Ainda não deu certo, mas Tânia quer levar o Prêmio Nobel José Saramago à cidade gaúcha. Ela e Lurdes, que já foi secretária municipal de Cultura, chegaram a fazer plantão na porta de um restaurante em que estava o português, durante a Bienal do Livro de 1999, no Rio. Elas conseguiram um livro que Saramago estava procurando - e assim conseguiram falar com ele. O convite acabou sendo, mais tarde, recusado, mas ninguém se espante se cruzar com Saramago sob a mítica cuia da praça da matriz de Passo Fundo, local de encontros imaginários entre o público e os escritores, em 2003. Após 20 anos de existência das jornadas, arte e literatura passaram a fazer parte do cotidiano de Passo Fundo. Recado ao leitor incrédulo: isso não é exagero. Em pleno período de férias, a trupe teatral Viramundos, que atua sobre um ônibus adaptado inspirado no filme Viagem do Capitão Tornado, de Ettore Scola, encenou, de surpresa, uma peça cômica e popular, envolvendo São Pedro, Jesus, Lúcifer, a Morte e um homem de bom coração, mas muito gastador. Bastou o ônibus começar a anunciar em seus alto-falantes que a peça O Ferreiro e a Morte seria encenada em meia hora para que se reunissem quase 200 pessoas na universidade, quando parecia não haver ninguém por lá. O grupo, amador, pretende fazer mais de cem apresentações neste ano, por todo o País. Passo Fundo também tem uma companhia teatral profissional, mantida pela UPF. O coordenador do projeto, Pieterson Duderstadt, afirma que "as Jornadas Literárias abrem horizontes, ajudam a conhecer novos dramaturgos e proporcionam um público significativo" para suas montagens. O apelo simbólico do evento é tão forte que o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra, em 1997, se instalou em frente do circo, aproveitando a reunião para chamar a atenção para suas reivindicações. O MST foi, então, chamado a participar teve espaço para dar o seu recado, e as jornadas seguiram em frente. Ainda é fruto das jornadas um núcleo da UPF chamado Mundo da Leitura. Nele, as crianças assistem a teatrinhos, têm acesso livre a estantes abarrotadas de livros e à Internet. Para os professores do primeiro grau, ficam penduradas na parede um monte de sacolas. Cheias de livros - 35 em cada uma. Eles levam, distribuem para os alunos e devolvem após duas semanas. Depois da lição de Passo Fundo e de Tânia Rösing, só não lê quem não quer.

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