Linguagem gestual marca mostra de teatro de BH

Festival Internacional de Teatro reuniu 18 companhias, 9 delas do exterior. Aux Pieds de la Lettre, um dos destaques da mostra, será apresentado em SP

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Por Agencia Estado
Atualização:

Os paulistanos vão ter a oportunidade de ver no dia 10, no Sesc Anchieta, Aux Pieds de la Lettre ("Ao Pé da Letra"), um dos bons espetáculos que integraram a programação do 6.º Festival Internacional de Teatro Palco & Rua, de Belo Horizonte (FIT). Bienal em sua periodicidade, o FIT é dirigido por Eid Ribeiro e Carlos Rocha, este último indicado para o Prêmio Multicultural Estadão Cultura 2002 justamente pela realização desse evento que, na edição deste ano, levou à cidade, entre os dias 15 e 25 de agosto, 18 companhias - 12 de palco e 6 de rua -, nove delas do exterior, de países como Estados Unidos, Polônia, França, Argentina e Espanha. "Para falar do sofrimento, o humor e a ternura constituem a única via possível", afirmam os atores Artur Ribeiro e André Curti, dois brasileiros que criaram a companhia Dos à Deux em Paris, em 1997 e, desde então, excursionam por festivais internacionais. Humor e ternura não faltam no espetáculo Aux Pieds de la Lettre, que explora a relação entre dois internos que dividem o mesmo espaço num hospital psiquiátrico. Ribeiro e Curti preferem chamar de Teatro Gestual sua linguagem cênica, que dispensa palavras, e mescla técnicas do chamado teatro físico, do circo, da dança contemporânea e da mímica. Em destaque no palco, uma tina d´água rodeada de folhas de papel amassado e uma mesa. Logo o público vai perceber o "diagnóstico" dos personagens. Um deles tem a obsessão dos pés limpos. Lava-os freqüentemente na tina e chega ao cúmulo de, a cada passo, espanar o chão onde pisa e também seus pés. É de outra ordem a obsessão de seu companheiro de cela - palavras, pensamentos, letras. São deles as folhas amassadas de papel. Ele escreve, escreve e escreve, sem jamais satisfazer-se com o resultado ou livrar-se da obsessão de tentar mais uma vez. A repetição coreografada provoca a um só tempo humor e angústia. O comportamento dos personagens reforça a situação de prisão. Se, externamente, estão "presos" na cela do hospício, interiormente são prisioneiros de suas obsessões. Porém o que torna a narrativa especial é a linguagem gestual e o jogo entre os atores. A "máquina de escrever" é criada - com incrível riqueza de detalhes - unicamente pelo corpo do ator. Tomar remédios ou até choques elétricos resulta em coreografia ímpar. Uma mesa em cena ganha funções e formas surpreendentes, transformando-se até num barco, numa das cenas mais bonitas da peça, na qual o obsessivo, depois de finalmente criar o seu texto, lança-o ao mar numa garrafa. E não é isso, afinal, o que faz o artista? Lançar sua arte sem saber quem por ela será tocado? Não se restringiu à companhia Dos à Deux a presença dessa poética silenciosa na programação do FIT. Formada pela bailarina parisiense Claire Ducreux e pelo palhaço catalão Leandre Ribera, a Cia. Leandre Claire foi responsável pela mesma combinação de humor e sensibilidade para falar do sofrimento humano em Madame et Monsieur. No palco uma lixeira e um piano tocado ao vivo por David Moreno. Na primeira cena, desperta na lixeira a mendiga Claire, enquanto pela platéia entra o mendigo Ribera, perseguido pela polícia - "representada" pelo contra-regra Aimon Niñerola brandindo sobre a cabeça um sinal luminoso e imitando com a voz a sirene característica. Abriga-se no palco. Inicia-se aí uma comovente história de amor, sem pieguismos, feita de pequenos conflitos, solidariedade e profundo afeto. Ao longo da peça, dividem o pouco que acham para comer, constroem um singelo abrigo, disputam pela "decoração" da casa, criam um filho, despedem-se dele, envelhecem. Até a interação com o público se dá de forma extremamente delicada. Em algumas situações, o riso surge de números clássicos, como o bailado de uma panqueca em preparo, outra ótima participação de Niñerola. Em outras, da cotidiana luta pela sobrevivência que, guardadas as devidas proporções, não é diferente da vivida pela maior parte dos espectadores. Ninguém duvida que é possível abrir mão das palavras, sem abrir mão de profundidade, densidade e humanidade, mas ainda está por ser feita uma reflexão mais aprofundada da presença cada vez mais numerosa dessa estética silenciosa em festivais de teatro. Tema complexo que merece ser pesquisado. Já existem muitas companhias no mundo especializadas nessa estética, os chamados "espetáculos de festival", que têm em comum antes de mais nada a não utilização de palavras, eliminando assim a barreira idiomática. Alguns, como os dois citados acima, alcançam densidade, mas a grande maioria é feita apenas para deleitar os olhos. Encantam com imagens bonitas, porém diluídas de sentido. O predomínio dessa estética pode desvirturar o objetivo primeiro dos festivais que seria o de promover um intercâmbio cultural, propiciando ao público e aos artistas entrar em contato com genuínas formas de expressão artística, de diferentes povos. Levada ao extremo, essa tendência poderia desembocar numa programação idêntica em todos os festivais do mundo. E seria preciso viajar a cada país, para saber o que há nos palcos. No aspecto positivo, a competição cada vez maior pela participação em festivais tem apurado essa linguagem. Ponto para a curadoria do FIT que soube fazer uma boa seleção dentro dessa linguagem, pelo menos na parte da programação acompanhada pela reportagem, em quatro dos dez dias de duração do evento, período em que foram apresentados, na mesma linha de criação, e com igual qualidade, também os espetáculos Deadly, da companhia brasileira Circo Mínimo, e Femina, do grupo Teatr Cogitatur, da Polônia. Não por acaso, o verdadeiro intercâmbio acabou ocorrendo na parte nacional do evento, que levou a Belo Horizonte, por exemplo, Nossa Vida não Vale um Chevrolet, de Mário Bortolotto, expressão genuína da urbanidade paulistana. E ainda outros bons espetáculos, entre eles uma criativa e inteligente encenação de O Pagador de Promessas da companhia gaúcha Depósito de Teatro, apresentada na porta de seis igrejas. Espetáculo que os paulistanos devem ver em breve, uma vez que o grupo já negocia sua vinda à cidade. Com linguagem expressionista e direção talentosa de Kalluh Araújo, a montagem mineira de Perdoa-me por me Traíres, com a Cia. Luna Lunera, foi outra das boas surpresas do festival e deve chegar a São Paulo em outubro. Num festival como o FIT, que se estende por diversos bairros da periferia e valoriza os espetáculos de rua, não poderiam faltar os palhaços. Havia pelo menos dois da melhor qualidade: o americano Fred O. Roellig, cujo objetivo - alcançado - é arrancar vaias da platéia com suas provocações e o argentino Nanny Cogorno, um adorável palhaço, do tipo que faz as crianças gargalharem e emociona os adultos.

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