Lília Cabral desbanca Bia Falcão com sua vilã Marta

Afinal, quem ainda se lembra de Bia Falcão? Lília Cabral, a vilã da vez, fala de "Páginas da Vida", de preconceito, hipocrisia e aposta: "A Marta vai ser difícil de esquecer"

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Por Agencia Estado
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Não dá para dizer que ela é boazinha. Outro dia mesmo, uma repórter ligou em seu celular e ela, sem-cerimônia, pediu para a tal ir para aquele lugar. Eram 20h30 e ela estava saindo do Projac. Depois de três semanas sem folga cumprindo a mesma rotina. A pergunta que a repórter queria fazer não tinha a ver com Marta, nem com os picos de audiência que a personagem está dando em "Páginas na Vida". A repórter queria saber em quem ela vai votar. Pena que Lília Cabral não acha que artista tem de levantar bandeira para sicrano ou beltrano. Nem que precisa ter secretária e que não possa andar na rua por causa do assédio dos fãs. Ela adora ir ao banco e ao supermercado. E vai. Quando tem um tempinho, também vai à livraria, toma um pingadinho no café, vai a pé até a Nossa Senhora da Paz para dar uma rezadinha. A repórter deve ter achado que Lília é igualzinha a Marta. Mal sabe que ela interrompe qualquer conversa para ver se a filha, Júlia, de 9 anos, almoçou direitinho, se já colocou o uniforme... Ensina Júlia a dar "bom dia" para todo mundo. E a leva desde pititica ao Baixo Bebê, ali no Leblon. O povo de lá sabe que Lília é boa mãe. A dona do quiosque, que a conhece há muitos anos, vive a defendê-la. Não pense que foi fácil fazer aquela cena do supermercado quando maltratou o menino com síndrome de Down. Tanto que, de primeira, ela não conseguiu falar. Teve de ir lá conversar com o garoto, explicar tudo para ele não ficar chateado. Daí sim. Assim como Marta, Lília não tem pudor em dizer o que lhe desagrada. Assim como Marta, Lília ficaria chocada ao receber a notícia de um filho portador de síndrome de Down. Ao contrário de Marta, Lília é leve, não guarda rancor e não rejeitaria a criança. Lília é real. Você já a viu em "Vale Tudo", "Tieta", "Pátria Minha", "História de Amor", "Chocolate com Pimenta"... Mas, agora, você não vai mais conseguir esquecê-la. Existem muitas Martas por aí? A classe média está cheia disso. É só ver qualquer Fantástico. As pessoas que ficam separando dinheirinho para o plano de saúde, aluguel... E para se divertir? Nada. A Marta é um personagem duro, massacrado, parece que o coração dela tem um pedacinho bom, o resto é tudo contaminado. É uma pessoa difícil de conviver, mas é uma pessoa real, que existe. Ela é má? Não. Ela é poluída de sentimentos desagradáveis. A amargura é um sentimento que se você o mantém por mais de três meses você cria uma depressão. O engraçado é que, desde o início, o Maneco (Manoel Carlos, autor) me disse: ´Vai ter gente que vai concordar com a Marta.´ E, desde o começo, procurei fazer a Marta o mais verdadeira possível. Quero até que, de alguma forma, as pessoas me confundam, achem que se estou fazendo bem o papel é porque sou deste jeito. E o que você tem da Marta? Tenho essa coisa impetuosa de dizer o que penso. Se vejo alguém fazendo ou falando alguma besteira digo na hora, na lata. Sem magoar, sem ferir, mas não deixo de falar. Tenho uma forma transparente de ser e de me posicionar. Mas não cultivo amargura nem rancor. Convivi com gente preconceituosa, que não perdoava e vi como isso afetou a vida delas. Cresci tendo ojeriza a este tipo de atitude. E qual é o limite de uma mãe? Acho que você pode chegar para a filha e ter uma atitude radical no sentido da educação, de mostrar o quanto ela te decepcionou. Mas, quando você passa do limite, quando começa a espancá-la na barriga, daí as pessoas estranham. Mas esse passar do limite é que dramaticamente tem que ter. Senão fica um personagem bobo. Felicidade ninguém quer ver. O casal bonitiiinho, que se ama (fala com voz infantil)? É chato. Bom para o controle remoto. Você já fez muitas novelas, mas é seu primeiro papel de destaque. Demorou para chegar? Não penso assim porque se pensasse daí ia ter amargura. ´Aiiii por que não fiz isso antes!´ (dramatiza) Cada novela que a gente faz é um crescimento. E o crescimento é treino. Tem gente que fala: ´Ai, quero ficar dois anos parada.´ Eu não vou ficar e não quero ficar. O treino faz você ficar cada vez melhor. E acho que as coisas vêm na hora certa. Se tivesse um personagem de destaque outra hora será que teria feito bem? No teatro eu tenho um currículo maravilhoso, fui premiada várias vezes. Então, de alguma forma, o que não compensa na TV, compensa no teatro. Mas a Marta vai ser um personagem difícil de esquecer. Li em uma entrevista que você se sentiu insegura ao fazer a Ingrid de "Laços de Família" (2000). Com anos de carreira ainda dá frio na barriga? Lógico que fiquei insegura, nunca tinha feito uma mulher casada com um homem muito mais velho (Fernando Torres), naquela fazenda, com uma filha destrambelhada (Deborah Secco)... Não sabia por onde começar. Fui para o sul, olhava para a paisagem e pensava: ´Meu Deus, o que eu faço?´ Daí comecei a ver aquele horizooonte, aquela coisa solitááária (fala lentamente). E dava uma certa angúúústia e daí disse: É isso. O personagem é isso. Tem uma angústia para viver e não vive. Para onde teve de olhar para encontrar a Marta? Não tive que olhar para nada. Estava tudo no texto. O Maneco escreve a rubrica. No enfarte do (Marcos; Alex) Caruso tinha assim: ´Os olhos de Marta se acinzentam, perdem o brilho.´ Lógico, como faz o olho ficar acinzentado? É a emoção. Daí teve um olhar que eu dei, é claro que meu olho não ficou cinza, mas foi como se tudo tivesse ido embora. Entendeu? E um papel tão carregado não cansa? Não fico muito ligada como se o personagem ficasse o tempo inteiro em mim. Outro dia estava eu, o Caruso, o Zé Mayer, a Natália (do Vale) e a Louise (Cardoso) e o Zé falou: ´E aquele negócio que você fez, de segurar a garganta, quando soube da notícia (da morte de Nanda). Aquilo pintou na hora?´ Falei: ´É lógico, Zé. Você acha que eu fiquei em casa engolindo seco?´ Não. Assim como o Caruso não deve ter ficado na casa dele ´óóóóóó´ treinando o enfarte. É que você estuda o contexto da cena, fica dias trabalhando, para fazer aquilo. Mas na hora. Quando acaba desligo o interruptor. Mas eu me choco, claro. Você acha que é bom falar aquelas coisas que ela fala? ´A criança fica retardada, dá um trabalho do cão´, ela diz. Como se estivesse falando de um cachorro: ´Esse cachorro é um inferno, todo dia faz cocô no tapete persa!´ É violento. Mas você não pode falar ´pêpêpê´, cheio de cuidado. Ou você faz ou não faz. E, se você tiver pudor com um personagem desse, você não vai fazer bem. Se a Marta já é vilã como você acha que vai ser agora com a rejeição da criança com Down? É, agora é que a cobra vai fumar. Mas acho que quando ela fala assim para a Helena: ´Tudo que a senhora fala sobre Down é muito bonito, mas não é assim´. Isso é uma verdade. Assisti ao Do Luto à Luta (documentário de Evaldo Mocarzel sobre síndrome de Down) e eu vi isso ali. Há pessoas que, lógico, aceitam, que graças a Deus têm esse lado humanitário bem desenvolvido. Mas ali tem gente que teve uma profunda rejeição quando apareceu uma criança com Down na família. E, em qualquer lugar, se tiver uma reunião social com dez mulheres falando sobre isso, todas vão dizer: ´Não é nada demais.´ Mas, por dentro, vão agradecer porque não aconteceu com ela. O que vai acontecer é que a hipocrisia vai ficar muito violenta e as pessoas vão ficar com mais raiva porque vão se ver. A Marta não vai ser hipócrita. Ela explica que não tem condições de pagar um atendimento diferenciado para a criança. De fato ela não tem condições. Você entende a personagem? Totalmente. Se fosse comigo... Seria um choque? Seria. Eu teria uma atitude humanitária? Teria. Cuidei de tanta gente da família que ficou doente, acho que teria. Mas procuraria uma razão para entender e ajudar outras famílias. Agora, dizer que logo de cara eu iria entender seria hipocrisia minha. A dona de um quiosque do Baixo Bebê, que me vê levar a Júlia desde que ela era pititica, me disse: ´Tem babás que falam que cuidam de crianças com Down e dizem que os pais não fazem nem um afago nelas´. É cruel. E é isso que a Marta vai despertar. E não é só Down, é aquele filho que tem comportamento ruim, o homossexual que o pai rejeita... Apesar do foco ser o Down, vamos falar de todos os preconceitos. Por que você acha que o pico de audiência sempre é com você? Ah, sei lá. É lógico que fico envaidecida, mas acho que não é por mim. A história é muito interessante. Nem vou ficar pensando nisso, nem gosto muito de ficar idealizando. É gostoso ter este carinho, esta atenção, esta procura, claro, mas não fico aproveitando. Sabe aquela que quer aproveitar o sucesso? (risos) Nunca fui assim. Sempre fui muito na minha. Onde está sua porção celebridade? Não tenho isso e me reservo este direito. Minha vida é minha vida e não tem nada de especial. Acho um horror aquela história da pessoa ir não sei onde e sair uma nota. Eu faço banco, supermercado, não tenho secretária para isso, sabe? E acharia um porre ter. Qual o fim que você queria para a Marta? Não queria que ela morresse. Queria uma ajuda humanitária. Fiquei pensando: se um dia ela se deparasse só e aparecesse uma criança surda e muda que ela, a princípio, não aceitasse e, na última alternativa da vida dela, ela iria ficar com aquela criança. Ela amolecesse. É que esta mulher vai sofrer tanto na vida. Mas se a Bia Falcão ficou lá em Paris no bem bom? Pô, sou bem melhor que a Bia Falcão! Sabe, o que eu mais gosto é que ninguém lembra mais da Bia Falcão. Desbanquei a Fernandona! (risos) Não vejo a hora de falar isso para ela.

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