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Ligações perigosas

O identificador de chamadas acabou com o trote, molecagem que Drummond adorava

Por Humberto Werneck
Atualização:

Uma palavra, não mais que uma, pingada na conversa, basta para datar quem a pronunciou. Se você tem idade para isso (não me queira mal), lembre-se de telex, disc laser, creme rinse, fecho ecler. Sim, ainda há quem use. Chego a pensar que tais vocábulos, mesmo destronados, serão os últimos a se apagar, caso venha a esponja impiedosa do Alzheimer.  O papo sobre teias de aranha verbais, que também não é novo aqui, vem a propósito da obsolescência do verbo “discar”, hoje condenado ao porão lexical onde jazem as múmias acima enumeradas. Escaldado, recomendo que se evite tal palavra, cujo poder de denunciar velhice é comparável ao costume de digitar ao celular com um indicador apenas, e não com ágeis polegares, como faz, para minha embasbacada inveja, o pessoal ainda isento de cabelos brancos. Teve vida curta o verbo discar, nascido no final dos anos 20 para significar o gesto de introduzir a ponta do indicador num dos dez orifícios do disco telefônico – na época, revolucionária novidade – e fazê-lo girar. Entre nós, o neologismo só ganhou certidão de nascimento em 1938, na primeira edição do Pequeno Dicionário Brasileiro da Língua Portuguesa. Ninguém diria, então, que teria vida tão breve, e que seria aposentado quando a telefonia adotou teclados. Hoje, o clássico que o Hitchcock nos deu em 1954 teria que chamar-se Tecle M para Matar. No Brasil, porque em inglês, mesmo com teclas, segue vivo o verbo to dial.  Vai agora uma declaração geriátrica: cheguei a utilizar telefones anteriores à extinta era do disco. Não em nossa casa, mas na fazenda, onde, nos anos 50, sobreviviam aparelhos já merecedores de museu: caixas verticais de madeira grudadas na parede, com um bocal falicamente empinado ao centro, fone pendurado na lateral esquerda e manivela na direita. Para fazer uma ligação, era preciso girar a manivela e cutucar, não longe dali, a dona Argentina ou a dona Geraldina, telefonistas do Sanatório Hugo Werneck. Ainda posso ouvir o tio Roberto aos berros, com sua voz metálica, pedindo ligação para um tal de Catta Preta, não no fim do mundo, mas ali ao lado, em Belo Horizonte.  Solicitação feita, o fone era devolvido ao gancho, e principiava a espera, que podia se espichar por horas. Coisa arcaica – do tempo do onça, como se dizia –, ancestral dos primeiros telefones automáticos, os quais, com trombetas de alta tecnologia, chegaram à cidade em 1931. Mais precisamente, às 2 da tarde do dia 23 de julho – e se tenho tais detalhes é graças ao cronista Barba Azul, pseudônimo de um moço de 28 anos que fizera meses antes sua estreia em livro com Alguma Poesia; sim, ele mesmo, Carlos Drummond de Andrade. Já no dia seguinte, abrindo uma série de crônicas empapadas de humor drummondiano, o Barba Azul registrou que a capital mineira estava se divertindo com o novo brinquedo, “achando a coisa mais engraçada do mundo escutar a voz que veio sozinha, sem que ninguém ligasse”. Havia “um contentamento infantil” em discar “para todas as pessoas conhecidas”.  Mais adiante, o cronista observou que no rastro da novidade viera outra: o trote, impensável no tempo em que toda ligação passava por telefonistas. Molecagem que, já se contou aqui, faria a alegria do poeta pela vida afora, numa excitada disputa com Fernando Sabino. Mas o cronista alertou: agora sem intermediários, as chamadas seriam, na mão das esposas, uma arma de controle dos maridos. Ou petardos a ameaçar a estabilidade conjugal – como bem mais tarde irá lembrar García Márquez em O Amor nos Tempos do Cólera: “Pouco tempo depois de instalados os primeiros telefones domésticos, vários casamentos que pareciam estáveis se acabaram devido a intrigas de chamadas anônimas”.  * Se o teclado acabou com o disco, o identificador de chamadas inviabilizou o trote, brincadeira na qual a minha geração ainda pôde se esbaldar. Não era a única, aliás. Na casa de minha namorada, quando soava o 2-4891, um gaiato atendia e recitava, desnorteando quem chamara: “Duas vezes quatro, oito, para nove, um”. Meu irmão Otávio, se reconhecia a voz de um chato em nosso 2-6605, também embaralhava os neurônios na outra ponta: “Vinte e seis mil, seiscentos e cinco”.  Na redação do suplemento literário onde até mesmo trabalhávamos, meu amigo Pellegrino gostava de “organizar” linhas cruzadas, quando, acidentalmente, uma ou mais vozes se intrometia na conversação. “Assim não dá, gente, vamos botar ordem!”, ralhava ele. “A senhora aí no fundo, com essa vozinha fina, quer falar com quem? E você, trate de esperar a sua vez!”  Acabaram-se as linhas cruzadas ou apenas tenho sido poupado? Quanto aos trotes, na falta de saber imitar a prosa fina de Paulo Mendes Campos, não hesitei em encenar na vida real uma história por ele contada, sobre a diferença entre chatear e encher. Primeiro, ligava-se uma dúzia de vezes, a pequenos intervalos, perguntando: o Valdemar está? Isto era chatear. Quando, na décima segunda investida, o interlocutor já atendia aos urros, você dizia, provocando a explosão final: aqui é o Valdemar, alguém ligou pra mim?

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