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Letras finas, autores nem tanto

Para Raul Pompeia, até saiu barato a menção apenas a solitárias atividades manuais, pois no mundinho literário da capital do País o que se murmurava era a respeito de sua real ou suposta homossexualidade

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Por Humberto Werneck
Atualização:

Houve quem clamasse por mais sangue – mas a essa gente insaciável vou ficar devendo. Até poderia garimpar algo do tipo daquela tragédia, velha de mais de um século, que desempoeirei faz duas semanas, na qual o escritor Gilberto Amado, baixinho mas deputado federal, matou com um tiro o poeta Aníbal Teófilo, um grandalhão que, segundo ele, vinha ameaçando puxar suas orelhas no sentido literal.

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Também não vou trazer mais uma troca de sopapos, como aquela em que, por causa de mulher, dois futuros gigantes das letras nacionais, Sérgio Buarque de Holanda e Carlos Drummond de Andrade, se engalfinharam em pleno gabinete do ministro (logo qual) da Educação. Podemos diversificar. Afinal, nos barracos literários o arsenal não se resume a trabuco e bordoada. 

Vamos lá. A exemplo dos anteriores, o episódio da semana tem como personagens dois autores jovens, aos quais o futuro haveria de assegurar glória perene. E que, em vez de tirotear ou de se estapear, sacaram desaforos por escrito, utilizando assim munição específica da classe, a qual, por vezes, pode ser tão ou mais contundente que balas e pescoções.

A história, cujos suculentos meandros aqui não caberiam, é bem conhecida, mais ainda que o affaire Amado-Aníbal, e até hoje merecedora de resmas de papel. Mais recentemente, ela veio ocupar boa parte das quase 500 páginas desse livro fascinante que é A Violência das Letras, no qual o professor César Braga-Pinto esmiúça o tema da amizade e inimizade na literatura brasileira no período de 1888 a 1940.

Muito mais, portanto, do que ruidosos entreveros extraliterários – como aquele, e aqui vamos finalmente ao ponto, que em março de 1892 pôs num dos cantos do ringue o poeta Olavo Bilac, autor, aos 26 anos, com três títulos na praça (Poesias, Via Láctea e Sarças de Fogo), e, no outro, um pouco mais velho (tinha 29), o romancista Raul Pompeia, que a obra-prima O Ateneu já começara a consagrar.

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Na raiz do estrepitoso desentendimento, havia um ingrediente político, que acabou por minar e pôr a pique a camaradagem de Olavo Bilac e Raul Pompeia. O autor de O Ateneu era adepto inflamado do marechal Floriano Peixoto, o primeiro vice-presidente da República brasileira, cujas ambições acabaram levando o presidente e não menos marechal Deodoro da Fonseca a lhe entregar o comando do País, em novembro de 1891. 

Raul, que graças a Floriano tinha sido nomeado diretor da Biblioteca Nacional, mantinha no Jornal do Commercio uma coluna não assinada, “As lembranças da semana”, cujas notas não disfarçavam seu fervor florianista. Bilac, cujas preferências iam para o lado oposto, escrevia no jornal O Combate a coluna “Vida Fluminense”, sob o pseudônimo “Pierrot” – e foi dessa trincheira que saiu, em 8 de março de 1892, um petardo arrasador em direção a Raul Pompeia. 

“O autor das Lembranças é um empregado do governo, professor de Mitologia na Escola das Belas Artes”, começou Pierrot – e se pôs a enxovalhar Pompeia como alguém servil e adulador que, padecendo talvez de “amolecimento cerebral”, “masturba-se e gosta de, a altas horas da noite numa cama fresca, à meia-luz de veilleuse mortiça, recordar, amoroso e sensual, todas as lealdades que viu durante o seu dia, contando em seguida as tábuas do teto, onde elas vaporosamente valsam”.

Para Raul Pompeia, até saiu barato a menção apenas a solitárias atividades manuais, pois no mundinho literário da capital do País o que se murmurava, de modo cada vez mais desinibido, era a respeito de sua real ou suposta homossexualidade, a qual, dizia-se, certas passagens de O Ateneu teriam vindo escancarar. 

Há quem sustente que a nota venenosa não foi obra de Bilac, mas de algum outro redator de O Combate, que, com ou sem consentimento do titular, teria se abrigado sob o mesmo pseudônimo. Para Raul Pompeia, contudo, o autor só poderia ser o poeta do famoso “ora, direis...”. Tardou a reagir, mas uma semana depois, na sua coluna, sem citar nominalmente o agressor, enveredou também pelo terreno de sexualidades pantanosas e bateu pesado, atribuindo, sabe-se lá por que, o ataque de que fora vítima a alguém marcado pelo “estigma preliminar do Incesto”. 

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O capítulo seguinte da encrenca teve os dois embolados no cenário improvável de uma confeitaria na Rua do Ouvidor, num clinch que os precipitou na derradeira alternativa prevista em seu testosterônico código de honra: um duelo com espadas e padrinhos, como então se usava. 

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Uma primeira encenação, num terreno baldio em frente ao Jardim Botânico, não chegou a começar, pois, alertada por alguém, a polícia apareceu. E nova tentativa, no atelier do escultor Rodolfo Bernardelli, também gorou, pois amigos comuns convenceram os espadachins a fazer as pazes. 

Assunto encerrado? Não para Raul Pompeia, agoniado na suposição de que sua desistência fosse vista como covardia. Por mais de três anos remoeu ele esse e outros caroços em sua alma, até que, no começo da tarde de um dia de Natal, em 1895, aos 32 anos, disparou um tiro no peito, não sem antes rabiscar um bilhete endereçado à redação de um jornal do Rio de Janeiro: “À Notícia e ao Brasil, declaro que sou um homem de honra”. Quem duvidaria disso, em meio à generalizada comoção que seu gesto fez baixar?

(Em tempo: a leitura do citado A Violência das Letras me levou a um artigo do grande Brito Broca, texto capaz, vou avisando, de render mais conversa: Duelos de Escritores, incluído na coletânea póstuma Teatro das Letras. Circunstância trágica que o livro não registra: o texto foi publicado no Correio da Manhã algumas horas antes de Brito Broca ser atropelado e morto na Praia do Flamengo, na madrugada de 21 de agosto de 1961.)

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