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Coluna semanal do historiador Leandro Karnal, com crônicas e textos sobre ética, religião, comportamento e atualidades

Opinião|Ler ou não ler, eis a questão

Gênio da criação, William Shakespeare é uma sementeira quase infinita de ideias

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Atualização:

Ele não surgiu de família privilegiada. Seu pai era um modesto fabricante de luvas. O local de nascimento estava distante de centros cosmopolitas e pujantes. Nunca fez estudos superiores. Jamais cruzou os mares que cercavam sua ilha. Sua existência transcorreu num universo de poucos quilômetros. Casou-se com uma namorada já grávida. Para inspirar mais cuidados sobre um destino que já se anunciava comum, em vez de abraçar uma profissão bem-aceita socialmente, manifestava desejo de fazer versos, atuar e escrever peças. Não tinha brilho no berço e suas escolhas indicavam um túmulo opaco. As lãs medíocres que teceriam sua vida estavam dadas ali, em 23 de abril de 1564. Origem não é destino e família não determina tudo. O homem que tudo tinha para ser medíocre e comum se tornou William Shakespeare, o maior autor de todos os tempos. Hoje, 23 de abril, lembramos seu aniversário de nascimento e de morte. 

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A frase mais conhecida de toda a literatura é o “ser ou não ser”. Mesmo sem saber inglês, mesmo sem nunca ter enfrentado o monumento criativo chamado Hamlet, crianças aprendem a frase na boca de Nigel, a cacatua da animação Rio 2. A frase se transforma em signo aberto que voa por todos os lados. Da mesma forma, Romeu passa a ser sinônimo de jovem enamorado, Otelo, de ciúmes, Macbeth, de ambição, e Lear, de sandice desorientada. Talvez Harold Bloom tenha razão: Shakespeare inventou o humano como o entendemos hoje. Coisa de um bardólatra, um amante obsessivo da obra do filho de Stratford-upon-Avon. Provavelmente seja mesmo. Estamos condenados a uma cegueira neste mundo. Se vamos ser ofuscados, ao menos que seja pela luz de William Shakespeare. 

Desde a primeira vez que li o Hamlet, imaginei: e se eu fosse livre como o príncipe dinamarquês? E se eu não estivesse preso a medos, convenções, covardias e ambiguidades e tivesse o impulso de focar até o fim em uma meta com consciência e inteligência? Nunca saberei, porque nunca fui tão livre como o melancólico Hamlet. 

No filme As Pontes de Madison (1995, Clint Eastwood), Meryl Streep interpreta uma pacata dona de casa que se enamora de um fotógrafo que passa pela cidade. A paixão desestabiliza sua vida. A protagonista pensa em largar filhos, posição e marido e se lançar à aventura extrema de uma paixão fora do remanso fluido dos rios pequeno-burgueses. Há um momento-chave: o carro para e ela está nele com o marido. Ela quer seguir o coração, largar aqueles seres e correr para seu amor. A personagem, então, coloca a mão na maçaneta do veículo. Chove e o carro com o fotógrafo está à frente. O tempo é curto, a angústia dilacerante. Se ela abrir, largará a honradez da dona de casa interiorana. Fugirá de tudo que a definiu e entrará numa zona nova, desafiadora e distante da única zona de conforto que conheceu. O olhar dela expressa tudo, a cena se desenrola por imagens e uma direção de câmera nervosa. Bem, nossa heroína afasta a mão da porta libertadora e aceita permanecer onde está e onde ficará até a morte. Venceu a covardia ou a coragem? Dilema de Antígona: sigo o coração ou a lei? 

A cena do cinema dialoga com o mundo shakespeariano. A diferença é que o drama da personagem não é uma cena filmada, mas um diálogo representado, uma reflexão que se desenrola. Tudo o que o olhar da esposa-mãe-amante do filme nos diz, indiretamente, o bardo desenvolve com os diálogos mais dilacerantes da literatura teatral. 

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As cenas são infinitas. Hamlet passa pelo odioso padrasto-assassino que, ajoelhado, reza. Pensa em matá-lo e desenvolve a possibilidade e suas consequências. A mão não está na maçaneta do carro, porém na lâmina que empunha. Mais longa ainda é a reflexão de Macbeth pouco antes de matar seu senhor e rei. Ninguém crava um punhal, mata ou morre, sem construir uma análise discursiva elaborada na obra de Shakespeare. 

A hybris (o desequilíbrio) que rege a tragédia clássica continua na obra do inglês. O que diferencia o bardo de Sófocles, autor da Antígona ou do Édipo Rei, é o salto do mundo interno, tímido no coro das obras gregas e avassalador nas peças do autor inglês. É um salto enorme. Mesmo personagens que são criadas a partir de uma crítica ou preconceito, como Polônio (do Hamlet) ou Shylock (do Mercador de Veneza), dizem coisas sábias e ponderadas. As reflexões sobre poder do último rei York, Ricardo III, estão muito à frente da personagem central de House of Cards. Talvez pudéssemos supor que o deputado/presidente Francis Underwood só desnuda a ação política porque houve um Ricardo III. 

Shakespeare é uma sementeira quase infinita de ideias. Ele é um inesgotável poço de personagens e um guia luminoso para voar milhas acima das platitudes do mundo atual. William é um gênio da criação e um mestre da psique humana que possibilita, em poucas linhas, avançar quilômetros na compreensão do mundo. Eis Shakespeare, homem a quem devo uma parte expressiva da minha parca consciência. Desafie-se e leia uma grande peça dele. Se o momento for adequado (porque nem sempre estamos aptos a Shakespeare), a luz vai transformar sua vida. Se ainda não for sua hora de entrar na aventura, paciência, ele espera na estante até você crescer. Somos todos anões. Subir no ombro de gigantes permite-nos contemplar um horizonte espetacular. Happy birthday, Will! Bom domingo a todos vocês!

Opinião por Leandro Karnal
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