Leonardo Padura Fuentes reconta, com brilho, morte de Trotski

Obra 'O Homem Que Amava os Cachorros' evidencia o confronto entre vencedores e vencidos

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Por Ubiratan Brasil
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A literatura do escritor cubano Leonardo Padura Fuentes revela uma interessante atração por figuras notáveis. Afinal, em 2001, ele publicou no Brasil o romance Adeus, Hemingway (Companhia das Letras), interessante policial em que estabelece uma relação de amor e ódio com o autor americano.

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No ano passado, Padura foi novamente destaque com um livro de mais fôlego, provavelmente o melhor até agora de sua carreira: O Homem Que Amava os Cachorros (Boitempo), audaciosa ficção que retrata os derradeiros anos do revolucionário russo Leon Trotski (1879-1940), especialmente a história de seu assassinato e de seu algoz, o catalão Ramón Mercader, que empunhou a picareta que o matou.

O cubano é um dos principais convidados da 2.ª Bienal Brasil do Livro e da Leitura, que começou ontem, em Brasília - ele fala neste sábado, 12, às 18h30, ao lado de Hamilton Pereira, sobre um tema muito apropriado: Trotski - Entre a Realidade e a Ficção.

Em O Homem Que Amava os Cachorros, Leonardo Padura utiliza um ardiloso recurso estilístico para transformar em ficção dados reais – ambientada em 2004, a trama é narrada por Iván, aspirante a escritor que trabalha como veterinário em Havana e, a partir de um encontro enigmático com um homem que passeava com seus cães, retoma os últimos anos da vida do revolucionário russo Leon Trotski, seu assassinato e a história de seu algoz, o catalão Ramón Mercader.

O resultado, segundo avaliou o crítico Eric Nepomuceno, em texto publicado no Estado em dezembro passado, é "um livro incômodo, inquietante – e imperdível". Sobre o assunto, Padura (que estará em São Paulo no dia 15, no Sesc Anchieta, às 20h30) respondeu, por e-mail, às seguintes questões.

Como se interessou por Trotski? Foi por causa do desconhecimento forçado a que fomos submetidos. Em Cuba, não se sabia nada a seu respeito porque o país seguia a mesma política da URSS: era como se ele não tivesse existido. E alguém que nem sequer merecia ser mencionado devia ser interessante, não é mesmo? Logo, quando me aproximei de sua vida e obra, interessei-me principalmente por sua vida, pelo que deve ter sofrido quando foi escolhido por Stalin como o inimigo perfeito, o maior inimigo da revolução e do povo. Tudo o que ele teve de passar nesses anos, a morte dos filhos, os exílios, atentados, fizeram dele uma figura que chamou minha atenção. E por fim, o fato de ter sido um marxista que mudou de opinião sem deixar de ser marxista. Por exemplo, suas considerações sobre a arte e os artistas são as mais ousadas jamais feitas por um marxista. Por tudo isto, ele despertou o meu interesse.

Como foi cuidar da linha que separa ficção de realidade? É sempre difícil estabelecer estes limites ao escrever um romance. O historiador tem um código mais rigoroso, uma relação mais respeitosa com a realidade histórica, enquanto o romance é o reino da liberdade. Não obstante, sou muito cuidadoso com os fatos históricos reais, não gosto de alterá-los, embora, em certas ocasiões, o desenvolvimento dramático peça aos gritos alguma violação dos acontecimentos, pois a realidade, como sabemos, é dramática à sua maneira, mas não à maneira do romance. O que costumo fazer é empreender a investigação mais aprofundada possível; procuro conhecer os personagens e seus contextos com muitos detalhes, e enxergá-los por dentro, não para analisá-los, mas para dar-lhes vida. Às vezes, um simples detalhe – o amor pelos cães, por exemplo – é mais revelador a respeito de um personagem do que toda a sua atuação histórica, e é aí que o romancista deve fazer suas escolhas, e pôr em linguagem estética, em função dramática, fatos que ocorreram na realidade, que ele pensa que devem ter ocorrido de determinada maneira a partir deste conhecimento adquirido.

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Alguns críticos brasileiros consideram este livro a síntese mais perfeita de sua escrita. O que pensa disso?Acredito que é um livro muito ambicioso e complexo. Por outro lado, continuo pensando que, contudo, meu melhor romance é O Romance de Minha Vida, por acreditar que ali ele alcança um equilíbrio mais preciso entre todos os componentes do livro. Mas O Homem Que Amava os Cães é meu melhor livro considerando o momento em que o escrevi, assim como cada um dos que escrevi é o melhor que podia escrever naquele momento. E se não são melhores, deve-se à minha incapacidade, e não a minhas intenções e ambições. Talvez o elemento que distingue este romance esteja na história, e não na ficção, porque a história que ele conta é terrível e nos afeta a todos.

Quando você visitou pela primeira vez a casa de Trotski, em Coyoacán, a figura dele era totalmente desconhecida e sua história era caluniada. Como foi esse processo de recuperação da imagem de Trotski? Este romance tem muito da luta destes dois contrários, o vencido e o vencedor, pelo menos em seu momento histórico. Stalin logo tratou de tornar detestável a figura de Trotski, e conseguiu fazer-se adorar pela esquerda mundial, enquanto matava comunistas e empreendia uma campanha de repressão não apenas em seu país. Stalin foi o grande câncer do comunismo, entretanto, até morrer e inclusive depois (como aconteceu em Cuba), continuou sendo honrado, quase venerado. Mas, na realidade, Stalin foi um homem que sofria de megalomania e crueldade, e consequentemente construiu uma sociedade doente de megalomania e crueldade, que devorou a si mesma. Não foi o imperialismo que destruiu a URSS e o socialismo, foi o próprio socialismo, patenteado por Stalin, que destruiu a si mesmo.

O amor de Trotski e de Mercader por cães é um interessante ponto em comum entre eles, não?Porque estes dois homens antagônicos, embora às vezes nem tanto, eram bastante fanáticos, dois personagens dramáticos que acabaram se defrontando em razão da história e da vida deviam ter algo em comum. E esse algo era um elemento que os humanizava, os tornava mais pessoas normais. Acredito que foi uma descoberta importante e me ajudou muito a moldar os dois personagens.

O que pensa da utopia neste século 21: é necessária uma revisão do conceito de utopia? Sim, é necessário rever o conceito porque a utopia mesma é necessária. Vivemos em um mundo que não é justo, que está devorando a si mesmo, onde há muitos pobres e poucos ricos que decidem o destino de todos... Alguma coisa deve mudar, o mundo tem de mudar. Então é preciso ter uma utopia, uma ideia de que a vida dos homens, o destino da humanidade, a justiça social podem ser diferentes, têm de ser diferentes. Talvez isto seja puramente utópico, inatingível, mas não podemos deixar de sonhar e considerar como possível.

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Mario Conde é um grande personagem em sua obra. Ele voltará em romances futuros? Pretende utilizá-lo como pretexto para tratar da sociedade cubana? Mario Conde continua e continuará me acompanhando. Agora aparece em Herejes, meu romance mais recente, que espero seja publicado logo no Brasil. Com este personagem, que antes foi um policial e agora se dedica a comprar e vender livros usados e, de vez em quando, a fazer algo parecido ao ofício de detetive, tenho um excelente pretexto para me colocar na realidade cubana que vivíamos e estamos vivendo. Conde e seu olhar me ajudam muito a esclarecer minha maneira de olhar a realidade cubana, e, com seus romances, pretendo ir armando uma crônica do que tem sido a vida cubana destes anos, sempre de um ponto de vista interior, artístico, não sociológico nem político.

Sei que não gosta de falar dos problemas cubanos, mas é possível dizer que Cuba vive uma transição? O que se deve esperar nos próximos anos? Não creio que se trate propriamente de uma transição, mas, de fato, há um movimento social e econômico de mudança, sem alterar a estrutura política do país. Mudaram alguns dos que governam o país, mas a forma de governá-lo não mudou. Em Cuba, governa-se de cima para baixo, com pouca participação da maioria das pessoas, que se inteiram das mudanças somente depois de aprovadas pelos governantes. E não sei o que esperar para os próximos anos. Tudo o que tem a ver com estas mudanças é elaborado no maior mistério. Fala-se de grandes mudanças sem dizer quais poderão ser. Mas também se fala que Cuba será eternamente socialista, como se o eterno existisse. Por enquanto, vejo que estão sendo tomadas medidas que são mais econômicas que sociais ou políticas, embora estas medidas afetem a sociedade e, no futuro, afetarão a política, de uma maneira ou de outra... Por isso, às vezes, sou um pouco otimista, mas, muitas outras, sou pessimista, porque vejo algo como manifestações de neoliberalismo de Estado na essência de algumas das mudanças que estão sendo introduzidas em Cuba.

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