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Lentidão da Lei Rouanet agrava agonia do setor cultural

Produtores e especialistas do meio cultural falam em paralisia e falta de canais de comunicação para a aprovação de novos projetos que poderiam ativar cadeias de emprego

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Por Julio Maria
Atualização:

Os prenúncios de que 2021 seria mais um ano difícil para a Cultura se confirmam, ao menos até aqui, com a lentidão de processos aprovados para terem verbas captadas para o uso da Lei Rouanet, que o Governo Federal rebatizou como Lei de Incentivo à Cultura (LIC). Ainda que girando em uma rotação bem mais lenta do que em anos anteriores e chamada de “desgraça” pelo presidente Jair Bolsonaro em 2019, é ela a principal ferramenta de fomento às produções culturais do País ao lado da Lei do Audiovisual, voltada para o cinema. Nenhum outro dispositivo garante uma destinação de verbas tão vultosa mesmo depois da redução de seus tetos: R$ 1 milhão para projetos comuns, R$ 6 milhões para os de perfil especial.

Theatro Municipal do Rio, um dos aparelhos dependentes de incentivos da Rouanet Foto: TMRJ

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O silêncio tem se imposto dos dois lados. Além de não responder às tentativas de contato da reportagem, que fez consultas durante vários dias a diversos responsáveis, a Secretaria Especial de Cultura, que tem o ex-ator de Malhação Mario Frias como secretário e o capitão da PM André Porciúncula como responsável por sua subordinada Secretaria de Fomento e Incentivo à Cultura, também não tem canais de comunicação com produtores, segundo relatos feitos à reportagem. Ao mesmo tempo, muitos profissionais do setor só falam sob anonimato, ou simplesmente não falam, por medo de terem o andamento de seus projetos ainda mais prejudicados.

Até o final de 2020, a falta de publicação de projetos aprovados no Diário Oficial, o ato que legitima os produtores a darem largada em seus trabalhos, travou uma quantia estimada em R$ 500 milhões. Sobre a manchete publicada no jornal O Globo que dizia: “Projetos Culturais perdem 500 milhões de reais já captados por falta de publicação no Diário Oficial”, Porciúncula fez um post em sua página do Instagram no dia 31 de dezembro: “Não se pode perder o que nunca foi concedido. Isso é dinheiro público, renúncia fiscal. A mídia militante tentará a todo custo me transformar num mero carimbador, não vão conseguir. Só aprovaremos a exata quantidade de projetos que for possível auditar. Respeito com o povo!”

Ex-ministro da Cultura do governo Michel Temer em 2017 e atual secretário estadual de Cultura e Economia Criativa, Sérgio Sá Leitão diz que há uma paralisia no setor cultural do Governo Federal. “Não há projetos aprovados desde novembro de 2020 da Lei Rouanet como está também parado o Fundo Setorial do Audiovisual, o principal mecanismno de financiamento do setor. As duas maiores ferramentas de fomento do País estão inativas justamente no momento em que elas deveriam atuar mais por terem um alto potencial de geração de renda, como mostram os estudos.”

As restrições espaciais trazidas pela pandemia e a ideologização dos artistas nos ataques diretos à Lei feitos pelo presidente Jair Bolsonaro não podem ter afugentado o lado que define o jogo no final das contas, o dos empresários? Sá Leitão diz: “Não houve retração nos investimentos em Lei Rouanet em 2020. Eles chegaram a R$ 1,3 bilhão, a mesma margem de anos anteriores. Isso mostra que há empresários querendo investir e artistas querendo produzir. A única retração que existe está no governo.” Uma crise sanitária, para ele, pode ter formado um contexto social de “tempestade perfeita” para quem não quer investir em cultura. “Essa soma de fatores pode ter levado o governo a agir assim diante de uma lei que vem sendo, nos últimos 30 anos, o principal instrumento de fomento cultural.”

Há projetos pedidos antes de 2020 que seguem seu curso, ainda que com tempos de resposta por e-mail levando em torno de dois a três meses. A produtora Dani Godoy relata que, apesar do caminho difícil, tem conseguido colocar de pé a gravação do novo DVD da cantora Elza Soares. O evento com aprovação de captação no valor de R$ 507 mil teve de ser modificado durante a pandemia. Originalmente, ele seria gravado em um show da cantora no alto do Morro da Urca. Com a chegada da Covid-19, o projeto foi transferido para São Paulo e vai ganhar um novo nome. A gravação está prevista para o dia 22 de abril e o lançamento para setembro. “Consegui a autorização para mudar de cidade e acabei sendo atendida. Mas sinto que estamos desamparados. Cada pedido de autorização leva de dois ou três meses para uma resposta, não há mais um telefone para termos contato”, diz Dani.

Produtor cultural da região centro oeste do País, Belchior Cabral diz que, mesmo com as distorções que a Lei Rouanet sempre apresentou, como a centralização dos recursos destinados pelas empresas feita em projetos do eixo Rio-São Paulo, havia muitas atividades ainda mantidas pela Lei. “O Teatro Nacional de Brasília está paralisado há oito anos enquanto o governo fala em criar um museu da Bíblia. Estamos sendo minados cada vez mais.”

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A empresa de cosméticos Natura, por meio de seu projeto Natura Musical, informou a reportagem de que desde 2020 “passou por uma grande revisão de escopo, categorias e expansão de atuação e capilaridade”. Por isso, conta, “optou por empregar verbas próprias para projetos inscritos na categoria Nacional do Edital.” Ao tomar essa decisão, tornou o processo “menos burocrático e mais acessível para novos artistas e formatos de projetos, como artistas de comunidades indígenas.” Sem usar mais a Lei Rouanet, a empresa afirma poder atuar com o apoio do matchfunding, financiamento coletivo para projetos culturais com participação do público, “possibilidade que não existe com o uso da Lei Federal de Incentivo à Cultura”. A companhia tem hoje mais de 100 projetos ativados, entre os aprovados via verbas próprias e via parcerias com as secretarias de cultura dos estados da Bahia, Rio Grande do Sul, Pará e Minas Gerais.

Outros equipamentos públicos procurados pela reportagem disseram não terem problemas com projetos aprovados antes de 2020, como a Pinacoteca do Estado. A Ancine, a Agência Nacional do Cinema, subordinada ao Governo Federal, afirmou, por meio de sua assessoria de imprensa, não ter um porta voz para atender a reportagem, mas enviou um relatório com números que demonstram as dificuldades do setor. “Após encerrar o ano de 2020 com uma queda de cerca de 77% em público e renda em relação ao ano anterior, o segmento de salas de exibição iniciou o ano de 2021 ainda sob os fortes efeitos da pandemia de covid-19.”

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