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Leia trecho do livro 'O Sonho Mais Doce', de Doris Lessing

Romance traça paralelo entre anos 60 e 80 e é lançamento mais recente da ganhadora do Nobel no Brasil

Por Doris Lessing
Atualização:

A escritora britânica Doris Lessing, ganhadora do Prêmio Nobel de Literatura 2007, tem cerca de vinte livros publicados no Brasil, mas muitas das edições estão esgotadas. Seu último romance publicado no País foi O Sonho Mais Doce, em 2005, pela mesma Companhia das Letras que programa para novembro As Avós, que saiu originalmente em 2003 e reúne quatro histórias sobre uma família pouco convencional. Sobre O Sonho Mais Doce,  a autora disse que sua intenção neste romance era "recapturar o espírito sobretudo dos anos 60, aquela época contraditória do século XX que, vista em retrospecto e feitas algumas comparações, parece ter sido de uma inocência ímpar. Havia menos grosseria que nos anos 70 e muito pouco da fria cobiça dos anos 80".   Confira o trecho inicial do livro:   Um final de tarde de outono e, lá embaixo, a rua era um cenário de luzinhas amarelas que davam a sensação de intimidade, todo mundo já agasalhado para o inverno. Atrás dela, uma penumbra fria permeava o aposento, mas nada seria capaz de intimidá-la: flutuava tão alto quanto uma nuvem de verão, tão feliz quanto uma criança que tivesse acabado de aprender a andar. O motivo dessa leveza de espírito inusitada era um telegrama do ex-marido, Johnny Lennox - camarada Johnny -, enviado três dias antes. ASSINEI CONTRATO PARA FILME FIDEL DOMINGO MANDO PENSÃO DEVIDA ATRASADOS INCLUSIVE. Domingo chegara. A razão do "atrasados inclusive" fora, e ela tinha consciência disso, algo semelhante à exultação que ela sentia no momento: não havia como Johnny pagar os "atrasados inclusive", que àquela altura deviam significar tanto dinheiro que Frances nem se dava mais ao trabalho de calcular. Mas com certeza ele devia estar esperando uma boa quantia, para soar tão confiante. Nesse ponto, uma ligeira brisa - melhor dizendo, apreensão - atingiu-a em cheio. Confiança era - não, ela não deve dizer a ferramenta de ofício de Johnny, ainda que várias vezes na vida tivesse achado que sim; por acaso se lembrava de algum dia tê-lo visto contrariado ou mesmo desanimado pelas circunstâncias?   Na escrivaninha atrás dela havia duas cartas lado a lado, como uma lição sobre as improváveis mas freqüentes justaposições dramáticas da vida. Uma delas lhe oferecia um papel numa peça. Frances Lennox era uma atriz menor, ainda que sólida e confiável, que jamais fora convidada para fazer nada além de papéis secundários. Tratava-se de uma peça nova, brilhante, para dois atores apenas, e o papel masculino seria interpretado por Tony Wilde, que, até então, lhe parecera estar num plano tão superior que ela jamais nutrira qualquer ambição de imaginar seu nome e o dele aparecendo em pé de igualdade num programa. E fora ele quem pedira para que lhe oferecessem o papel. Dois anos antes, tinham atuado juntos, ela como sempre num papel funcional e secundário. Ao final de uma curta temporada - a peça não fizera sucesso - ouvira, enquanto entravam e saíam, alternando coxia e palco, para receber os aplausos: "Muito bem, foi muito bom". Sorrisos do Olimpo, tinha pensado, ciente de que Tony dera sinais de interesse por ela.   Agora, se via numa efervescência de sonhos febris, sem que isso a pegasse propriamente de surpresa: sabia melhor que ninguém quão assentada estava, quão controlado se achava seu eu erótico. Só que era impossível deixar de imaginar como seria bom ter um certo espaço para desenvolver seu talento para a alegria (ela ainda o tinha, não tinha?), até mesmo para o prazer inconseqüente, e, ao mesmo tempo, mostrar no palco do que era capaz, havendo uma brecha. Entretanto não iria ganhar grande coisa, num teatro pequeno, com uma peça que era uma incógnita. Sem aquele telegrama de Johnny, não poderia se dar ao luxo de dizer sim.   A outra carta oferecia uma coluna (nome ainda por definir) de conselhos pessoais no jornal The Defender, emprego seguro e bem pago. Isso seria uma continuação da outra vertente de sua vida profissional como jornalista free-lance, justamente a que lhe rendia algum dinheiro. Escrevia sobre uma variedade de assuntos havia anos. De início, testara seus horizontes em pequenos jornais e tablóides locais, qualquer lugar que lhe pagasse um pouquinho. Depois passou a pesquisar para escrever artigos sérios que começaram a aparecer em periódicos nacionais. Ganhou nome como articulista sólida e equilibrada que muitas vezes lançava uma luz inesperada e original sobre um tema da época.   Ela se sairia bem. Para o que mais a experiência a equipara, se não para uma olhada isenta nos problemas dos outros? Mas aceitar esse emprego não traria prazer nenhum, nenhuma sensação de estar testando novos horizontes. Ao contrário, teria de endireitar os ombros com aquele enrijecimento interno proposital que é quase um bocejo reprimido.   Estava farta de problemas, de almas machucadas, dos extraviados e perdidos, que delícia seria dizer "Certo, vocês podem se virar sozinhos por uns tempos que eu estarei no teatro todas as noites e grande parte do dia também". (Lá vinha mais uma cutucada meio gelada: você perdeu o juízo? Sim, e estava adorando cada minuto.)   O topo de uma árvore ainda com suas folhas de verão, mesmo que já um tanto esgarçadas, brilhava: a luz de dois andares acima, vinda dos aposentos da velha, arrebatara a folhagem do escuro, lançando-a num movimento animado, quase verde: a cor era implícita. Julia estava em casa, portanto. Readmitir a sogra - a ex-sogra - nos pensamentos provocou nela uma apreensão bem familiar, devido ao peso da desaprovação que escorria pela casa, até atingi-la, e também a um outro motivo, algo do qual só se dera conta nos últimos tempos. Julia fora internada, poderia ter morrido, e Frances teve de reconhecer finalmente quanto dependia dela. Supondo que não houvesse mais Julia, o que faria ela, o que fariam eles?   Entretanto, todos costumavam chamá-la de a velha, inclusive Frances, até bem pouco tempo antes. Mas Andrew não. E ela havia reparado que Colin já começara a chamá-la de Julia. Os três aposentos do andar acima do seu - onde estava agora - e abaixo do de Julia eram habitados por Andrew, o filho mais velho, e Colin, o caçula, filhos dela e de Johnny Lennox. Frances tinha três aposentos para si, um quarto, um escritório e um outro quarto sempre em uso por alguém de passagem, e uma vez escutara Rose Trimble dizer: "Para que ela precisa de três quartos, é puro egoísmo".   Ninguém perguntava: por que Julia precisa de quatro quartos? A casa era dela. Uma casa barulhenta e repleta de gente entrando e saindo, dormindo no chão, levando amigos cujos nomes muitas vezes Frances nem sabia, que possuía no topo uma zona estrangeira, que era toda ordem, onde o ar parecia delicadamente cor de malva, perfumado com violetas, cheia de armários contendo chapéus de várias décadas enfeitados com véus, pedrarias e flores, e tailleurs de um corte e tecido que não existiam mais em lugar nenhum. Julia Lennox descia as escadas e saía, as costas eretas, as mãos enluvadas - havia gavetas de luvas -, sapatos impecáveis, chapéus e mantôs nas cores violeta ou malva e, à volta dela, uma aura de essências florais. "Onde ela arruma essas roupas?", Rose perguntara antes de se dar conta daquela verdade pertencente ao passado, de que certas roupas podiam ser guardadas durante anos e anos, e não precisavam ser descartadas uma semana depois de compradas.     Na casa, abaixo da porção que Frances ocupava, havia uma sala de estar que ia da frente aos fundos, e ali, em geral num enorme sofá vermelho, os adolescentes trocavam suas confidências intensas, dois a dois; ou, se abrisse a porta de manso, veria "as crianças" enroscadas em cima dele, às vezes bem uma meia dúzia, qual uma ninhada de filhotes. A sala não era usada o suficiente para justificar tamanho espaço tirado do miolo da casa. A vida transcorria na cozinha. Apenas quando davam uma festa, ela recebia os méritos devidos, mas as festas eram poucas, já que os jovens preferiam as discotecas e os concertos de rock; ainda que, pelo visto, achassem difícil se ausentar da cozinha e da grande mesa comprida que já fora usada por Julia, com uma das abas baixadas, para jantares formais, quando ainda "recebia". Como dizia ela.   Agora a mesa vivia em sua capacidade máxima, às vezes com dezesseis ou vinte cadeiras e banquetas em volta.     O apartamento no subsolo era amplo, e Frances nem sempre sabia quem acampava por lá. Sacos de dormir e acolchoados se amontoavam no chão, como detritos depois da borrasca. Ela se sentia uma espiã quando descia para conferir a situação. Exceto por fazer questão de que o mantivessem limpo e arrumado - eles eram tomados por acessos ocasionais de "arrumação" que pouca diferença faziam no estado geral das coisas -, preferia não interferir. Julia não tinha tais inibições. Costumava descer os poucos degraus, parava para supervisionar a cena de dorminhocos que de vez em quando se prolongava até o meio-dia ou mais tarde ainda, xícaras sujas pelo chão, pilhas de discos, rádios, roupas largadas em volta, amarfanhadas, em seguida dava as costas muito lentamente, uma figura severa apesar de seus veuzinhos e das luvas que, às vezes, ostentavam uma rosa presa ao pulso, e, tendo notado, pela rigidez de um dorso ou por uma cabeça nervosamente erguida, que sua presença fora percebida, voltava a subir devagar as escadas, deixando atrás de si, no ar estagnado, aromas de flor e pó-de-arroz caro.     Frances se debruçou na janela para ver se havia luz saindo da cozinha: sim, havia, portanto estavam todos lá, à espera do jantar. Quem, esta noite? Saberia logo mais. Foi então que o fusca de Johnny dobrou a esquina, estacionou com precisão e, de dentro, saiu o próprio. Na hora, três dias de sonhos tolos se dissolveram, enquanto pensava: Eu fui uma louca, eu estava maluca. O que me fez imaginar que alguma coisa mudaria? Se houvesse de fato um filme, então não haveria dinheiro nenhum para ela e os meninos, como sempre... mas ele não dissera que o contrato tinha sido assinado?     No tempo que levou para atravessar sem pressa o escritório, parando na escrivaninha para olhar as duas cartas fatídicas, chegar à porta, ainda se demorando, e então descer as escadas, foi como se os três últimos dias nunca tivessem acontecido. Ela não iria fazer a peça, não iria gozar da perigosa intimidade do tablado ao lado de Tony Wilde, e tinha certeza absoluta de que no dia seguinte escreveria ao Defender aceitando o emprego.     Com vagar, recobrando a compostura, desceu a escada e, depois, sorridente, parou na porta aberta da cozinha. De encontro à janela, com os braços esparramados para espalhar o peso do corpo no parapeito, estava Johnny, só bravatas e - ainda que não se desse conta disso - desculpas. Em volta da mesa, uma variedade de jovens; Andrew e Colin estavam ambos presentes. Todos olhavam para Johnny, que pregava sobre algum assunto, todos com admiração, exceto os filhos. Sorriam, como os outros, mas eram sorrisos ansiosos. Eles, como ela, sabiam que o dinheiro prometido para aquele dia desaparecera na terra dos sonhos. (Por que diabos fora contar? Era mais do que previsível!) Já acontecera tudo isso antes. E eles, como ela, sabiam que Johnny chegara naquele momento, quando a cozinha estava cheia de gente jovem, para não ser recebido com ira, lágrimas, censuras - mas isso pertencia ao passado, fazia já muito tempo.     Johnny abriu bem os braços, palmas viradas para ela, sorrindo dolorosamente, e disse: "O filme gorou... a CIA...". A um olhar de Frances, desistiu, calou a boca e se virou inquieto para os dois filhos. "Não se incomode", disse Frances. "Na verdade eu não esperava outra coisa." Os meninos estavam de olho nela; a preocupação deles a fez se censurar ainda mais.   Parou à beira do fogão, onde vários pratos iriam muito em breve passar pela hora da verdade. Johnny, como se as costas de Frances o absolvessem, começou um velho discurso sobre a cia, cujas maquinações dessa vez eram responsáveis pela não-realização do filme. Colin, precisando de alguma âncora dos fatos, interrompeu para perguntar: "Mas, pai, eu pensei que o contrato...".   Johnny foi rápido. "Muita chateação. Você não entenderia... o que a CIA quer, a CIA consegue."   Um olhar cauteloso por cima do ombro mostrou a Frances o rosto de Colin retesado num nó de raiva, perplexidade e ressentimento. Andrew, como de hábito, parecia despreocupado, achando graça até, mas ela sabia quão distante estava disso. Essa cena, ou algo parecido, se repetira durante toda a infância dos meninos.       No ano em que a guerra começara, 1939, dois jovens, esperançosos e ignorantes- como os que estão em volta da mesa esta noite-, se apaixonaram, a exemplo de milhões de outros nos países em guerra, e se enlaçaram em busca de consolo naquele mundo cruel. Mas naquele mundo havia também emoção, o mais perigoso dos sintomas da guerra. Johnny Lennox levara Frances à Liga de Jovens Comunistas bem quando estava se desligando para se tornar um adulto, mesmo que não fosse ainda um soldado. Gozava de certa fama, o camarada Johnny, e precisava que ela soubesse. Das últimas fileiras em salas lotadas, Frances o escutara explicar que aquela era uma guerra imperialista e que as forças progressistas e democráticas deveriam boicotá-la. Logo mais, entretanto, ele estava de farda e, nas mesmas salas, para as mesmas platéias, conclamava todos a fazerem sua parte, porque a guerra passara a ser contra o fascismo, o ataque da Alemanha à União Soviética tinha mudado as coisas de figura.   Havia desafetos e protestos, bem como seguidores fiéis; havia vaias e gargalhadas estridentes. Johnny era zombado por estar ali em pé explicando na maior calma a nova Linha do Partido como se não tivesse  afirmado exatamente o oposto em ocasiões anteriores. Frances ficou impressionada com aquela  tranqüilidade, aceitando-até mesmo provocando-a hostilidade com sua pose, os braços abertos, mãos espalmadas, sofrendo pelas duras necessidades da época. Estava de uniforme da RAF. Sua vontade fora ser piloto, mas a vista não ajudou, de modo que se tornou cabo, depois de recusar por motivos ideológicos a patente de oficial. Ficaria na administração.   Assim foi a introdução de Frances na política, ou, melhor dizendo, na política de Johnny. Quase uma façanha, talvez, ser jovem no final dos anos 30 e não se importar com política, mas era fato. O pai advogava no condado de Kent. O teatro fora sua janela para os encantos e as aventuras do grande mundo, primeiro em peças na escola, depois em teatros amadores, sempre em papéis principais, mas sempre do mesmo gênero, por causa de seu ar de "rosa inglesa" típica.   Depois, também ela envergou a farda, uma das moças ligadas ao Ministério da Guerra, quase todas servindo de motorista para oficiais graduados. Moças atraentes e fardadas, naquele tipo de emprego, se divertiam bastante, ainda que esse aspecto costume ser deixado em segundo plano, por uma questão de respeito, e talvez até de vergonha, perante os mortos. Ela dançou um bocado, jantou fora, entregou muito de leve seu coração a franceses, poloneses e americanos charmosos, mas não esqueceu Johnny, nem as ardentes noites de amor angustiado que ensaiavam o desejo futuro de um pelo outro.   Enquanto isso, ele foi para o Canadá, cuidar dos aviadores da RAF que estavam sendo treinados lá. Já havia sido promovido a oficial e estava se saindo muito bem, suas cartas deixavam isso claro; depois voltou para casa, assistente de um figurão qualquer, com a patente de capitão. Ficava tão bonito de farda, e ela tão atraente de uniforme. Nessa sua semana de folga, casaram-se, Andrew foi concebido e, para ela, acabaram-se os bons tempos: pegou-se num quarto, ao lado de um bebê, solitária e com medo por causa dos  bombardeios. Ganhara uma sogra, a temível Julia, que, com ar de dama de sociedade de alguma revista de moda de 1930, se abalou da casa que tinha em Hampstead-esta casa-para manifestar todo o seu choque diante das acomodações de Frances e oferecer abrigo.   Frances não aceitou. Podia não ser um animal político, mas partilhava com todas as fibras do desejo fervoroso de sua geração de ser independente. Quando saiu de casa, foi para um quarto mobiliado. E agora, tendo sido reduzida a pouco mais que a mulher de Johnny, mãe de um bebê, era independente e podia se definir por essa idéia, se agarrar nela. Nada de mais, mas era dela.   Assim os dias e as noites se arrastaram, e ela tão distante da vida charmosa que tivera até pouco tempo antes que era como se nunca tivesse saído da casa dos pais em Kent. Os dois últimos anos da guerra foram duros, pobres, assustadores. A comida era ruim. Bombas que pareciam projetadas para esfrangalhar com os nervos dos outros afetavam os dela. As roupas eram difíceis de achar, e feias. Não tinha amigos, só se encontrava com outras mães de crianças pequenas. Receava sobretudo que, quando Johnny voltasse para casa, ficasse decepcionado com ela, uma moça gorda e cansada, nada parecida com a jovem elegante de uniforme por quem ele se apaixonara perdidamente. E foi o que aconteceu. [...]

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