Leia trecho do livro de Faulkner

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Por Agencia Estado
Atualização:

"Havia alguma coisa de sonho em tudo aquilo. Não de pesadelo: apenas de sonho - o quadro pacífico, silencioso, remoto, silvestre, quase primitivo de limo e lama e vegetação selvagem e calor ao qual as próprias mulas, mexendo pacificamente os rabos e afugentando a vida infinita e invisível e inumerável que era na verdade o ar onde nos movíamos e o qual respirávamos, não só eram adequadas mas de fato curiosamente apropriadas, por sua condição de becos sem saída biológicos e portanto já obsoletas antes mesmo de nascer; o automóvel: o brinquedo mecânico caro e inútil taxado de poder e força por dúzias de cavalos, mas ainda assim convertido em impotente e desvalido nas garras quase infantis de poucos centímetros da reunião temporária de dois leves e pacíficos elementos - terra e água - que as mais frágeis unidades de movimento, produzidas pelos métodos mais antigos e alheios à mecânica, haviam agüentado ao longo de inúmeras gerações sem realmente perceber isso; nós três, três bípedes idênticos e agora irreconhecíveis criaturas de lama, empenhados numa batalha de vida e morte com ela, o progresso - se havia - tinha que ser medido em terríveis centímetros, como aqueles que medem a movimentação de geleiras. E enquanto isso o homem, sentado em sua cadeira inclinada, nos observava, Ned e eu lutando por cada centímetro que conseguíssemos na corda, agora mais escorregadia por causa da lama que deslizava das nossas mãos, e na parte de trás do carro Boon lutando como um demônio, titânico, enfiando a estaca debaixo do automóvel e o levantando e empurrando para a frente; houve um momento em que ele desistiu, jogou longe a estaca e, agachando-se, agarrou o veículo com as mãos e até conseguiu levá-lo adiante meio metro, como se fosse um carrinho de mão. Nenhum homem poderia agüentar. Nenhum homem deveria agüentar."

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