Leia trecho de 'O Professor', novo romance de Cristovão Tezza

O livro O Professor, de Crtistovão Tezza, editado pela Record, chega neste fim de semana às livrarias.

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Por Redação
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"Acordou de um sono difícil: sobre algo que parecia um leito, estava abraçado ao inimigo, que tentava aproximar os lábios dos seus. Não quis ser ríspido, entretanto, empurrá-lo para longe, como seria o óbvio, talvez agredi-lo com um soco; apenas desviou o rosto, dizendo algo que agora não conseguia mais ouvir, na claridade da manhã. Mas eram movimentos gentis, ele percebeu; tentava afastar-se dele com delicadeza, como quem desembarca de uma cama em que a mulher dorme e não deve ser acordada. O inimigo: sim, ele imagina que teve um, durante a vida inteira, e agora ele vinha assombrar até seus sonhos, com sua proximidade pegajosa. Ficou intrigado, no gelo de quem acorda, com o fato de não se perturbar com a evidente sugestão sexual, aqueles lábios envelhecidos quase tocando os seus, uma imagem tão forte que não conseguiria esquecê-la, não esqueceria jamais, ele se assombrou, como se tivesse um interminável futuro pela frente, relembrando o sonho que viveu em 1952, criança, caindo de um desfiladeiro e salvando-se com a força de um grito - a mãe veio velá-lo, e lembra-se nitidamente daquela mão protetora nos cabelos, mais de 60 anos atrás. Jamais passou a mão nos cabelos de seu filho, mas os tempos eram outros, mais duros - ou apenas ele é que sempre se imaginou uma pessoa dura. Ora - e ele sacudiu a cabeça, voltando ao início. Quanto tempo? Setenta - e olhou os dedos, movendo-os lentamente, sentindo a breve dor que acompanhava os gestos ao amanhecer. Não importa. Chegando aos 71, ele corrigiu a si mesmo. A imagem da queda permaneceu, e era como se novamente caísse, o vazio no peito, a sombra do pânico, a montanha-russa na alma. Tudo é química, disse em voz alta em defesa, tudo é química, esses comprimidos, ele acrescentou, a voz baixinha agora, que ninguém ouvisse, tudo é química, eu sou vítima desses experimentos em pó em forma de comprimidos - e enfim sorriu, como se a simples explicação suprimisse toda a cadeia de desconcertos do amanhecer."

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