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Leia trecho de <i>Matadouro 5</i>, clássico de Kurt Vonnegut

Clássico do escritor é sobre o bombardeio de Dresden na 2.ª Guerra Mundial

Por Agencia Estado
Atualização:

Kurt Vonnegut (1922-2007) publicou seu romance mundialmente famoso, Matadouro 5, em 1969, quando os Estados Unidos passavam pela Guerra do Vietnã, por distúrbios raciais e pela efervescência cultural e social dos anos 60. O foco do livro foi o bombardeio de Dresden, na Alemanha, pelas Forças Aliadas em 1945, acontecimento ao qual ele assistiu como prisioneiro de guerra. Matadouro 5 pode ser encontrado nas livrarias numa edição da L&PM de Porto Alegre, traduzida por Cássia Zanon, que fez o seguinte comentário sobre a morte do escritor: "Kurt Vonnegut morreu ontem, aos 84 anos. Foi cedo demais. E apesar do sucesso que experimentou como escritor, foi ouvido de menos. Tivesse sido o contrário, o mundo talvez fosse hoje um lugar melhor. (...)Quem ainda não leu, deve ler. Quem já leu, certamente há de querer repetir a dose. Sempre se pode aprender um pouco com a fina ironia de Vonnegut". Leia um trecho do primeiro capítulo de Matadouro 5 TUDO ISTO ACONTECEU, mais ou menos. As partes da guerra, pelo menos, são bem verdadeiras. Um cara que eu conhecia realmente foi morto em Dresden por pegar uma chaleira que não lhe pertencia. Outro cara que eu conhecia realmente ameaçou contratar assassinos profissionais para matar seus inimigos pessoais depois da guerra. E assim por diante. Eu mudei todos os nomes. Eu realmente voltei a Dresden com dinheiro da fundação Guggenheim (que Deus a mantenha) em 1967. A cidade parecia muito com Dayton, em Ohio, mas com mais espaços abertos do que Dayton. Deve haver toneladas de farinha de ossos humanos enterradas no solo. Voltei lá com um velho companheiro de armas, Bernard V. O?Hare. Fizemos amizade com um motorista de táxi que nos levou ao matadouro onde havíamos ficado presos durante a noite como prisioneiros de guerra. O nome dele era Gerhard Müller. Ele nos contou que foi prisioneiro dos americanos por um tempo. Nós lhe perguntamos como era viver no comunismo, e ele disse que foi terrível no começo, porque todo mundo teve de trabalhar muito duro e porque não havia casa, comida e roupa para todos. Mas as coisas estavam muito melhor agora. Ele tinha um apartamentinho agradável, e sua filha estava recebendo uma excelente educação. Sua mãe havia morrido incinerada na tempestade de fogo de Dresden. Coisas da vida. *** No Natal, ele enviou a O?Hare um cartão que dizia o seguinte: ?Desejo um feliz Natal e um próspero Ano-Novo a você e a sua família e também ao seu amigo. Espero que voltemos a nos encontrar num mundo de paz e liberdade em meu táxi se o acaso quiser.? ? Gostei muito disso: ?Se o acaso quiser?. Eu não gostaria de dizer a vocês o quanto este bendito livrinho me custou em dinheiro, ansiedade e tempo. Quando voltei para casa depois da Segunda Guerra Mundial, há vinte e três anos, achei que seria fácil escrever sobre a destruição de Dresden, já que tudo o que teria de fazer seria relatar o que eu tinha visto. E também acreditei que resultaria numa obra-prima, ou que pelo menos me renderia muito dinheiro, já que o assunto era tão grandioso. Mas poucas palavras saíram da minha cabeça na época - pelo menos não foi uma quantidade suficiente para um livro. E também não me vêm muitas palavras agora, quando já me tornei um velho babão, com as minhas lembranças, os meus Pall Malls e os meus filhos adultos. Fico pensando em como Dresden é uma parte inútil das minhas lembranças e mesmo assim no quão tentadora é a idéia de escrever sobre Dresden e lembro dos famosos versos: There was a young man from Stamboul, Who soliloquized thus to his tool: ?You took all my wealth Andy you ruined my health, And now you won?t pee, you old fool?. [Era uma vez um jovem de Istambul, / que falava assim com seu pau: / ?Você pegou toda a minha riqueza, / acabou com a minha saúde / e agora nem mija, seu idiota?. (N do T.)] *** E lembro também da velha canção que diz: Meu nome é Yon Yonson Eu trabalho em Wisconsin, Trabalho numa serraria de lá, As pessoas que encontro caminhando na rua Perguntam ?Qual é o seu nome?? E eu digo Meu nome é Yon Yonson Eu trabalho em Wisconsin... E assim infinitamente. As pessoas que conheci com o passar dos anos freqüentemente me perguntavam com o que eu estava trabalhando, e eu normalmente respondia que o principal era um livro sobre Dresden. Um dia disse isso a Harrison Starr, o cineasta. Ele ergueu as sobrancelhas e perguntou: - É um livro de guerra? - É - respondi. - Acho que sim. - Sabe o que digo às pessoas quando fico sabendo que elas estão escrevendo livros antiguerra? - Não. O que é que você diz, Harrison Starr? - Eu pergunto: ?Por que você não escreve um livro antigeleiras??. É claro que o que ele quis dizer foi que sempre haveria guerras, e que elas eram tão passíveis de serem evitadas como as geleiras. Eu também acredito nisso. *** E mesmo que as guerras não continuassem existindo, como as geleiras, ainda assim haveria a boa e velha morte. ? Quando eu era um pouco mais jovem, e estava trabalhando em meu famoso livro sobre Dresden, perguntei a um velho amigo dos tempos de guerra chamado Bernard V. O?Hare se podia visitá-lo. Ele era promotor de justiça na Pensilvânia. Eu era escritor em Cape Cod. Havíamos sido recrutas na guerra, soldados da infantaria. Jamais imaginamos que iríamos ganhar dinheiro depois da guerra, mas estávamos nos saindo muito bem. Pedi para a companhia telefônica Bell encontrá-lo para mim. Eles são maravilhosos nesse sentido. Às vezes tenho umas crises, tarde da noite, envolvendo álcool e telefonemas. Eu fico bêbado e afasto a minha mulher com um hálito que mistura gás mostarda com rosas. Depois, falando com seriedade e elegância ao telefone, peço às telefonistas que liguem para este ou para aquele amigo, de quem não tenho notícias há anos. Foi assim que entrei em contato com O?Hare. Ele é baixinho, e eu sou alto. Éramos como Mutt e Jeff [Personagens de quadrinhos criados pelo norte-americano Bud Fischer. (N. do T.)] durante a guerra. Fomos presos juntos na época. Falei quem eu era pelo telefone. Ele acreditou de imediato. Estava acordado. Estava lendo. Todo mundo em sua casa estava dormindo. - Escute... - eu disse - estou escrevendo um livro sobre Dresden. Queria uma ajuda para lembrar das coisas. Fiquei pensando se poderia ir até aí para encontrá-lo. Podíamos beber juntos, conversar e lembrar daquele tempo. Ele não ficou muito entusiasmado. Falou que não se lembrava de muita coisa. Mesmo assim, disse que eu fosse até lá. - Acho que o clímax do livro será a execução do pobre Edgar Derby - eu disse. - A ironia dessa história é muito incrível. Uma cidade inteira é incendiada, e milhares de pessoas são mortas. Então um único soldado raso americano é preso nas ruínas por pegar uma chaleira. Ele enfrenta um julgamento normal e é executado por um esquadrão de fuzilamento. - Hm - respondeu O?Hare. - Você não acha que o clímax está exatamente aí? - Eu não sei de nada - disse ele. - Este é o seu negócio, não o meu. ? Como um negociante de clímax e emoções e caracterizações e diálogos maravilhosos e suspense e conflitos, eu havia esboçado a história de Dresden muitas vezes. O melhor esboço que fiz, ou pelo menos o mais bonito de todos, foi nas costas de um rolo de papel de parede. Usei os lápis de cor da minha filha. Uma cor diferente para cada personagem principal. Uma ponta do papel de parede era o começo da história, e a outra, o final, e havia também toda aquela parte do meio, que era o meio da narrativa. E a linha azul encontrou a linha vermelha e depois a linha amarela, e a linha amarela parou porque o personagem representado pelo amarelo estava morto. E assim por diante. A destruição de Dresden foi representada por uma faixa vertical de xadrez cor de laranja, e todas as linhas que ainda estavam vivas depois dela saíam do outro lado. *** O final, onde todas as linhas pararam, era uma plantação de beterraba às margens do Elba, perto de Halle. Chovia muito. A guerra na Europa havia terminado fazia umas duas semanas. Estávamos organizados em filas, vigiados por soldados russos - ingleses, americanos, holandeses, belgas, franceses, canadenses, sul-africanos, neozelandeses, australianos, milhares prestes a deixarmos de ser prisioneiros de guerra. Do outro lado do campo havia milhares de russos, poloneses, iugoslavos e assim por diante vigiados por soldados americanos. Foi feita então uma troca debaixo da chuva - um por um. O?Hare e eu subimos na traseira de um caminhão com muitos outros. O?Hare não levava nenhum souvenir. Quase todo mundo estava levando alguma coisa. Eu tinha um sabre oficial da Luftwaffe. E ainda tenho. O americano raivoso que chamo de Paul Lazzaro neste livro tinha com ele cerca de meio quilo de diamantes, esmeraldas, rubis e coisas do gênero. Havia tirado as jóias de pessoas mortas nos porões de Dresden. Coisas da vida. (...)

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