Leia trecho de <i>Conhecimento do Inferno</i>, de Lobo Antunes

Última obra da trilogia formada por Memória de Elefante e Os Cus de Judas

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Por Agencia Estado
Atualização:

Conhecimento do Inferno é o terceiro volume de uma trilogia formada por Memória de Elefante e Os Cus de Judas. Trata-se de um monólogo de um psiquiatra, alter ego do autor, que narra uma viagem solitária de carro pelo sul de Portugal. Leia um trecho do livro: "O mar do Algarve é feito de cartão como nos cenários de teatro e os ingleses não percebem: estendem conscienciosamente as toalhas na serradura da areia, protegem-se com óculos escuros do sol de papel, passeiam encantados no palco de Albufeira em que funcionários públicos, disfarçados de hippies de carnaval, lhes impingem, acocorados no chão, colares marroquinos fabricados em segredo pela junta de turismo, e acabam por ancorar ao fim da tarde em esplanadas postiças, onde servem bebidas inventadas em copos que não existem, as quais deixam na boca o sabor sem gosto dos uísques fornecidos aos fi gurantes durante os dramas da televisão. Depois do Alentejo, evaporado na paisagem horizontal como manteiga numa fatia queimada, as chaminés que se diriam construídas de cola e paus de fósforo por asilados habilidosos, e as ondas que se diluem sem ruído na praia no croché manso da espuma, faziam- no sempre sentir-se como os bonecos de açúcar nos bolos de noiva, habitante espantado de um mundo de trouxas de ovos e de croquetes espetados em palitos, a imitar casas e ruas. Estivera uma vez com a Luísa em Armação de Pêra e quase não conseguira sair do hotel surpreendido por aquela insólita mistifi cação de bastidores que toda a gente parecia tomar a sério, lubrifi cando-se de cremes fi ngidos sob um holofote corde- laranja, manejado de um buraco de nuvens por um electricista invisível: confinado à varanda do quarto por um absurdo que o assustava, contentava-se em espiar, embrulhado num roupão de banho que o aparentava a um boxeur vencido, em que as marcas dos socos se substituíam pelos lanhos da gillette, o grupo da família lá embaixo, em torno de um monte de sandálias e chinelos, à laia de escuteiros disciplinados à roda do seu fogo ritual. De noite, uma ventoinha ferrugenta expelia na sua direcção o hálito doce e morno de um contra-regra diabético, e uma constelação de luzes suspendia-se por fi os de arame de barcos de lata, reduzidos à geometria sem espessura do perfil. Deitado na cama, abraçado à Luísa, via as cortinas agitarem-se na claridade fosforescente de uma aurora de celofane, e perguntava-se a si próprio, intrigado, se o amor que fazia não passava de um exercício frenético dedicado a um público inexistente, para quem articulava as suas réplicas de gemidos numa convicção patética de actor. E agora, tantos anos depois, que partia sozinho da Balaia na direcção de Lisboa, esperava, quase sem querer, encontrar-me contigo no jardim, no meio de estrangeiras loiras, trágicas e imóveis como Fedras, em cujos olhos vazios habita a solidão resignada das estátuas e dos cães. Sentar-me-ia num banco, entre as varizes sem ternura de uma alemã velha e as coxas entrelaçadas de um casal de adolescentes à deriva numa jangada de haxixe, sorrindo para ninguém a alegria de uma dimensão desconhecida, até ver-te de repente, do outro lado da praça, com um cesto de verga ao ombro, de cabelo repartido ao meio num penteado de squaw, a avançar para mim como a menina do anúncio dos colchões Repimpa, que os óculos de Greta Garbo reciclavam. A impessoalidade uniforme dos hotéis produzia nele uma exaltante sensação de liberdade: nenhum objecto seu assinalava os móveis como a urina dos cachorros a casca das árvores. Os longos corredores repletos de portas numeradas traziam-lhe à idéia fantasias de bordel caro, do mesmo modo que as pequenas mercearias da sua infância se haviam transformado em supermercados gigantescos semelhantes a estações espaciais, e comprazia-se a imaginar, trotando pela passadeira, de quarto em quarto, homens mergulhados de bruços a ofegarem sobre pares de joelhos perfumados de madeiras do Oriente, antes de se lavarem com sabonete Ach Brito nos jactos contraditórios do polibã. Os empregados da recepção ofi ciavam entre livros e chaves numa dignidade de padres. Sujeitos de cachimbo dormitavam os fi letes do almoço com mantas de jornais estrangeiros esquecidos nos colos magros. (...)"

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