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Leia capítulo do livro '1968 - O Que Fizemos de Nós'

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Por Redação
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Livro de Zuenir Ventura, 1968 - O Que Fizemos de Nós faz ponte entre passado e presente.  A editora Planeta lançou neste sábado, 26, em um box unindo este novo com o clássico 1968 - O Ano Que Não Acabou(R$ 75). Confira abaixo um capítulo de 1968 - O Que Fizemos de Nós. A culpa é de 68 Como ainda dói nos filhos a lembrança do que os pais sofreram Há os que têm toda a razão de odiar 1968, apesar da ligação sentimental e da afinidade, ou por isso mesmo. Não se fala apenas dos que sofreram traumas em conseqüência de violências contra os pais - prisão, tortura, exílio -, mas também dos que, tendo que disputar a atenção paterna ou materna com a atividade política, se sentiram preteridos e sofreram crises de carência afetiva, ciúme, rejeição. Eu não tinha visto ainda A culpa é do Fidel, de Julie Gavras, quando minha filha Elisa, nascida em 1964, me disse que se identificara muito com a personagem principal, Anna, de 9 anos. E me recomendava o filme como imperdível. Dias depois estávamos lá numa sessão, minha mulher e eu, perseguidos o tempo todo pela curiosidade de descobrir por que nossa filha se via tão refletida na personagem daquela menina que levava uma vida tranqüila em Paris com os pais, o irmão caçula e uma hilária babá cubana, para quem a culpa do que de ruim acontecia no mundo era de Fidel Castro. Até que, em decorrência de mudanças nos hábitos de sua casa e de seus pais, o humor de Anna vai se tornando divertidamente iracundo. Primeiro, um tio comunista é preso na Espanha e o pai decide acolher a irmã e a sobrinha fugidas de Franco. Depois, o casal viaja ao Chile e, como era o momento da eleição de Salvador Allende, volta cheio de propostas revolucionárias. Movidos pelas novas idéias, os pais de Anna a obrigam a deixar de freqüentar as aulas de religião de que gostava tanto, trocam o apartamento confortável por um bem mais modesto, demitem a babá que vivia advertindo contra os perigos do comunismo, e a menina, cada vez mais revoltada, vê o seu mundo invadido por uma gente estranha e antipática que afasta os pais dela. Freqüentemente acorda à noite, se esgueira até a sala e surpreende reuniões em que homens barbudos meio suspeitos conspiram, preparam manifestações e falam de assuntos que ela não conhece. Tomada por uma irritação crescente, mas ao mesmo tempo fascinada por aquela inesperada movimentação, ela passa a buscar explicações para palavras novas que vai ouvindo, às vezes escondida: aborto, revolução, passeata, feminismo e, principalmente, solidariedade - a solidariedade pregada pelo grupo diante da solidão dela. Baseado no livro autobiográfico da jornalista italiana Domitilla Calamai, o filme é uma simpática sátira aos clichês e lugares-comuns ideológicos da esquerda, dirigido pela filha do realizador grego Constantin Costa-Gavras, autor de uma importante obra cinematográfica voltada para temas políticos. Julie retratou situações parecidas com as que deve ter presenciado na sua infância, passada nos anos 70, como a de Anna e de tantos outros filhos e filhas dos que tiveram alguma participação política naqueles tempos. Foi com tudo isso - a aflição da personagem em entender as conversas dos adultos, a sensação de abandono, a "invasão" da casa pelos amigos dos pais - que Elisa se identificou. Muitas vezes saindo do seu quarto de noite, ela também viu reuniões políticas ou festivas como as do filme. Só que não eram necessariamente homens barbudos ameaçadores, mas pessoas que ela conhecia ou iria conhecer em seguida: Paulo Francis, Glauber Rocha, Fernando Gabeira, Leon Hirszman, Hélio Pellegrino, Joaquim Pedro de Andrade. "Quase chorei quando vi no filme aquela menina meio perdida entre os adultos, querendo entender o que se passava e se sentindo, como eu, excluída do mundo deles", queixa-se Elisa. A rejeição maior, porém, que a traumatizou mais do que as reuniões noturnas das quais não podia participar, se deu em outra situação. Quando ela ia me visitar no quartel da PM Caetano de Farias, no centro do Rio, eu, para tranqüilizá-la, dizia que estava muito bem ali na prisão, podia até jogar basquete com Ziraldo durante os banhos de sol. Só muito tempo depois soube que essas revelações provocavam nela um efeito paradoxal e lhe faziam muito mal. Ela concluía que eu havia feito uma opção voluntária entre a nossa casa e a prisão. Se eu me dizia tão satisfeito, era porque preferia a cadeia a voltar para junto dela, do irmão e de minha mulher. Por coincidência, Daniela Thomas sentiu essa mesma rejeição quando o pai, o humorista Ziraldo, se mostrou feliz na prisão. Ela conta: "Lembro da primeira visita ao DO PS. Um prédio de filme de terror, com elevador de ferro batido e tudo. Lembro do papai todo alegrinho contando que tinha aprendido a jogar mau-mau, que era um jogo fantástico que ele ia ensinar pra gente assim que saísse de lá, e que a prisão era uma festa. Eu fiquei chateada, pensando que talvez ele gostasse mais da cadeia do que da nossa casa e que não iria mais querer voltar". Como o cartunista foi preso três vezes, Daniela, que é hoje cineasta, cenógrafa e designer, tem uma coleção de más lembranças. A primeira foi no Forte de Copacabana. "Demorei a entender por que ele ficou preso ali por um mês inteiro. Lembro de ir visitá-lo com a mamãe e de ele me mostrar uns desenhos que fazia com as imagens que a sombra da árvore e as grades pintavam na parede do quarto. Eu achei que ele tinha ficado louco. Dormi chorando baixinho." "Num outro ano, me lembro de abrir a porta para uns soldados saídos de um filme da sessão da tarde - farda verde, capacete, fuzil - e do papai fazendo a mala, e de eu me agarrar na calça dele e ele me empurrar pra eu soltar a calça (não entendia por que na hora). Lembro da mamãe berrando coisas estapafúrdias: ‘Não voto mais neste país!’ (como se fosse possível votar numa ditadura), e de ela chorar copiosamente depois que a porta se fechou." Daniela também chorou muito quando teve que passar dois natais e dois réveillons longe dos pais. Ela fora levada com a irmã Fabrizia para Belo Horizonte e depois para São Paulo, para ficar com os tios até que "as coisas se resolvessem". Quando Ziraldo e a turma do Pasquim estiveram presos na Vila Militar de Marechal Hermes, subúrbio do Rio, em 1970, as mulheres puderam visitá-los um dia com os filhos. Estavam todos num salão ouvindo o relato da "batalha das baratas" que tinham travado na véspera, num noite de tempestade, no escuro, quando uma centena delas tinha invadido as celas fugindo do ralo. Para enfrentá-las, Luiz Carlos Maciel se armou de creme de barbear, achando que era spray inseticida. "Estávamos todos às gargalhadas", recorda Daniela, "quando o meu irmão Antonio, do alto dos seus 2 anos de idade, entrou pelo salão marchando como um soldadinho, portando um quepe enorme que carregava todo orgulhoso. No meu primeiro ataque de ira, voei até ele, puxei com toda a força o quepe e o lancei ao chão. O treco saiu quicando pelo parquet. Antonio uivava de tanto chorar. Faço idéia do mal-estar que causei, mas por alguns segundos fiz as pazes com a infância que os desgraçados tinham maculado. "Foi a primeira desforra de Daniela. "Depois, na adolescência, virei a mais leninista das leninistas." Um dos companheiros de prisão de Ziraldo era o pai do governador do Rio Sérgio Cabral Filho, que também ficou marcado. Ele conta: "Em 1970, vivi um dos momentos mais traumáticos da minha vida por conta dos atos da ditadura. Naquele ano, meu pai foi preso, e me recordo que, por ser o irmão mais velho, fui o único a visitá-lo junto com minha mãe, Magaly. Morávamos na Rita Rudolf, no Leblon, e jamais esqueci o ritual de sair de casa, comprar um mil-folhas, que era o doce preferido de meu pai, e ir até a prisão. Eu era criança e não entendia como uma pessoa de bem estava na cadeia! Foi, sem dúvida, o Natal mais triste da minha vida, e um dos momentos-chave da minha iniciação política". Também em 2007 foi lançado outro filme importante, este brasileiro, tratando de temática parecida: O ano em que meus pais saíram de férias, de Cao Hamburger. A história se passa durante a Copa do Mundo de 70: um menino cujos pais, militantes de esquerda perseguidos pela polícia, têm que partir para a clandestinidade é deixado com o avô, que morre em seguida. Por coincidência, o protagonista se chama Mauro e é judeu, como meu filho, nascido em 1963. Por isso, o Mauro da vida real se identificou com o personagem, se comoveu vendo o filme e, como jornalista, acabou entrevistando o ator-menino. Se esses choques aconteciam com os filhos de alguém sem qualquer filiação partidária e sem importância política, imagine o sofrimento dos filhos e filhas de um verdadeiro ativista, desses que viveram na clandestinidade e/ou foram torturados. Daniel Souza, nascido em 1965, é um desses. É filho de Herbert de Souza, o Betinho, lendário militante político e social que nasceu hemofílico, contraiu o vírus da aids numa transfusão de sangue e morreu em 1997, tendo passado cinco anos na clandestinidade e nove no exílio. Como vivia fugindo da repressão policial, o filho, que hoje é diretor da [X]Brasil Comunicação em Causas Públicas, tinha que usar nome falso por medida de segurança. Para não traumatizar o menino, Betinho propunha isso como uma brincadeira, que era combinada antes: "Vamos brincar de tio? Agora eu sou seu tio e você é meu sobrinho". Um dia a brincadeira teve que ser acionada sem que desse tempo de combinar antes. "Estávamos numa casa", recorda Daniel, "quando umas crianças perguntaram como se chamava o meu tio. Eu corrigi afirmando que não era meu tio, e sim meu pai. Eles repetiram ‘tio’, eu insisti que era pai, e fomos perguntar para ele." Era uma situação em que Betinho não podia reconhecer o filho. "Mesmo diante da minha raiva e desespero, ele continuou afirmando que éramos tio e sobrinho." Daniel tinha menos de 7 anos, e o pai sentiu, conforme confessaria mais tarde, "uma raiva ainda maior da ditadura", que além de tudo ainda o forçava a negar a paternidade. Em seguida, eles foram para o exílio no Chile, e aí começaria para Daniel o que ele chama de "um eterno recomeçar de vida, um sem-fim de chegadas e partidas, de começos e rupturas". "Quando você chega num país novo, a primeira coisa a fazer é um intensivo para aprender a língua; depois, entra numa escola onde todas as matérias são novas, assim como os professores e os alunos. Também é nova a sua casa, é nova a comida, é nova a rua, sãos novos os amigos que se fazem nessa rua. O processo de adaptação não é fácil." No seu caso, os choques culturais ocorreram várias vezes: primeiro no Chile, depois na Suécia, em seguida na Inglaterra, depois no México e, de certa forma, também quando voltou ao Brasil, pois não falava português nem conhecia nada da história ou da geografia da sua terra. "Foram cinco países em oito anos, dos meus 7 aos 15. Foi até engraçado, porque me alfabetizei no Chile, depois aprendi fluentemente o sueco, o inglês, de novo o espanhol no México e finalmente, aos 15 anos, fui estudar português." Para Daniel, mais difícil do que chegar era partir. "Você se despede do pequeno universo que uma criança tem, ou seja, os amigos, o colégio, a rua e os cachorros, já que tive um em cada país. É um eterno chegar e partir que te deixa como marca a transitoriedade e a espera do próximo destino." Com a Anistia, em 79, o irmão do Henfil voltou ao Brasil com a família, mas foram precisos alguns anos para que Daniel tivesse "certeza interna" de que em breve não estaria em outro destino. "Triste também é não ter tido amigos de infância, que eram deixados pelo caminho, numa época em que não havia e-mail, blog ou qualquer outra forma de contato, além das cartas." Gogóia nasceu em 1968. Seu nome, não o apelido, revela um pouco da linhagem dos pais. Ela se chama Geórgia Melina. Geórgia por causa da cidade natal do ditador Stálin; Melina em homenagem a Melina Mercouri, a atriz grega (também militante de esquerda) de Nunca aos domingos, um filme muito popular nos anos 60 que seus pais viram mais de vinte vezes. O irmão de Gogóia se chama Vladimir, e aí não é preciso explicar. É Vladimir como o outro de patronímico Ilitch, o Lênin. Em 1969, o pai, o jornalista Pedro Porfírio, foi preso, torturado e permaneceu na cadeia por um ano. Quando saiu, o casal se separou. "As minhas lembranças são de grupos que chegavam na minha casa e que brincavam comigo. Todos falavam muito baixo, e os meus pais pediam para eu nunca repetir o nome daqueles ‘tios’ e ‘tias’. Uma delas - essa é ‘tia’ do coração até hoje - é a atriz Jacqueline Laurence. Quando ele estava preso, a Embaixada da Argélia nos ajudou, mandando brinquedos incríveis e comidas exóticas que na época eu não conhecia, tipo tâmaras." Por toda essa situação, Gogóia e o irmão eram hostilizados pela vizinhança e pelos colegas de escola, e não tinham quase com quem brincar. Em compensação, quando veio a Anistia, ela diz que se sentiu "chique, como filha de preso político". O programa de domingo era ir ao aeroporto receber os companheiros do pai. Ela "adorava" os chocolates que lhe davam. "Hoje, o que me deixa mais chateada é não ter fotos da minha infância." Essa espécie de alta rotatividade subversiva deixou uma curiosa seqüela na jornalista Liana Melo, cuja casa na infância e adolescência lembrava o apartamento da menina Anna, do filme A culpa é do Fidel. Sua mãe, Zuleide Faria de Melo, hoje presidente do PCB - Partido Comunista Brasileiro -, já era membro do "Partidão", e sua residência, um ponto de encontro de reuniões. "O entra-e-sai de desconhecidos - muitos dos quais só fui conhecer pelo verdadeiro nome depois do processo de redemocratização, inclusive dos que morreram na prisão - ficou ainda mais intenso nos anos 70." Em plena ditadura militar, Zuleide e três outros militantes tiveram como tarefa transferir todo o acervo do PCB de São Paulo para a Itália. "Foram três anos, de 1974 a 1978, de muita agitação lá em casa", conta Liana. "Desconhecidos chegavam, passavam alguns dias e depois sumiam." O resultado traumático é que hoje, aos 46 anos, Liana ainda não se acostumou a dizer adeus. "Era tanto entra-e-sai e tantas as pessoas que sumiram da minha vida, que tenho uma enorme dificuldade com rituais de despedidas. Saio dos lugares da mesma forma que entrei - sem despedidas formais." Uma das histórias mais dramáticas desses tempos é a de João Carlos de Almeida Grabois, o Joca, nascido em 1973 numa prisão do Exército, onde passou os primeiros 52 dias de vida junto com a mãe ali detida. Talvez tenha sido o mais precoce preso político do país. Em 2005, foi oficialmente reconhecido como tendo sido "torturado no ventre". Seu pai, André Grabois, o avô paterno, Maurício Grabois, e o tio, Gilberto Olímpio Maria, são desaparecidos políticos. Sua mãe, Criméia Alice Schmidt de Almeida, guerrilheira, teve uma trajetória política acidentada. Nascida em Santos, em 1945, ela começou no movimento estudantil em Belo Horizonte aos 13 anos e continuou militando até 68, quando, já estudante de enfermagem no Rio, foi presa no congresso da UNE, em Ibiúna. Como não era liderança, saiu logo, mas passou a ser perseguida, caindo na clandestinidade depois do AI-5. Em janeiro de 69, deslocou-se para o Araguaia, na região onde mais tarde se instalaria a guerrilha. Ficou lá de 69 até 12 de abril de 72, e aí mergulhou na mata, sem contato com qualquer vilarejo ou cidade. Permaneceu até agosto daquele ano, quando, já grávida, com malária e precisando fazer contato com o partido - o PC do B -, foi para a casa da irmã, em São Paulo. No dia 28 de dezembro de 72, ao saírem para levar um dirigente do partido, a irmã e o marido, que eram semiclandestinos, foram presos. No dia seguinte, seria a vez de Criméia, já no sétimo mês de gravidez. Quando os militares chegaram, perguntaram se ela era a empregada. Respondeu que sim, mesmo sem saber que a irmã havia pedido para não chegarem atirando porque na casa só estavam os filhos e a empregada. Foi levada para o DOI-Codi, um centro de repressão do Exército conhecido como "sucursal do inferno". Por alguns dias, Criméia conseguiu se passar por empregada. Davam-lhe depoimentos para ler e ela fingia que não sabia, enquanto a irmã era torturada para dizer onde ela estava. Quando finalmente descobriram sua identidade, não perderam tempo. "Nesse dia mesmo começou a pancadaria. O primeiro interrogatório durou 36 horas. Lembro da chegada do major Carlos Alberto Brilhante Ustra dizendo: ‘Onde está aquela filha-da-puta?’." Criméia conta ter apanhado da cela até o corredor que levava à sala de  tortura. Apagou e recobrou a consciência diante de outro militar que fazia o jogo do "policial bom". Era torturada por um, e o outro aparecia para "proteger". Havia até um médico, que uma vez a examinou para indicar em que partes do corpo ela poderia apanhar e receber choques sem perder o bebê. O dirigente do PC do B que estava com a irmã e o cunhado morreu ali. Ele se chamava Carlos Nicolau Danielli. Criméia chegou a vê-lo muito machucado. Dias depois, mostraram-lhe a manchete do jornal com a notícia forjada de que ele fora morto em um tiroteio. Diziam que ela também ia morrer, mas num acidente de automóvel na serra das Araras. À noite ligavam o carro, que era do cunhado, fingindo que iam levá-la. Na manhã seguinte, explicavam que tinha havido um problema, mas que não passaria daquela noite. A cena se repetia. Havia também torturas menores, como fixar horário para suas necessidades. Como estava grávida e urinava muito, era obrigada a fazer xixi numa lata, que esvaziava de manhã ao ir escoltada para o banheiro. Pior era o espancamento. Ela se lembra do rosto todo inchado e da boca doendo muito de tanto apanhar. Quando era levada para o interrogatório, tinha que descer uma escada de olhos vendados, e o carcereiro ficava atrás batendo-lhe nas costas. "Até hoje, mesmo depois de fisiatra e ortopedista, sinto dores e seqüelas como herança daquele tempo." Certo dia, um médico do Exército foi examiná-la para atestar que estava inteira e podia ser transferida para o pelotão de Investigações Criminais, em Brasília, onde o comandante era o general Antonio Bandeira. Única mulher na corporação, foi posta em uma solitária com um banheiro aberto, de frente para os guardas, que ficavam olhando para ela. Uma vez reclamou de não ter banho de sol, e foi atendida em sua reivindicação com um castigo: colocaram-na sem sapato, sob sol forte, num pátio de cimento e sem sombra. Seus pés ficaram queimados, cheios de bolhas. No dia 11 de fevereiro de 1973, Criméia sentiu a bolsa romper e chamou o guarda. "Na cela tinha muita barata", ela lembra. "Com o rompimento da bolsa, elas perderam a inibição e subiram em cima de mim." O médico só apareceu no dia seguinte às 5 horas, e queria examiná-la ali mesmo. Ela resistiu, argumentando que, se ele fosse médico mesmo, a levaria para um lugar apropriado. Acabaram levando-a para o Hospital de Base de Brasília, onde ela se desentendeu também com outro médico, que ameaçava devolvê-la, alegando que a bolsa não estava rompida. Ela revidou xingando-o de "torturador". Quando depois ele mandou um enfermeiro aplicar-lhe o antibiótico Benzetacil, uma injeção dolorosa, ela o tomou "com gosto", pois a essa altura seu filho corria risco de infecção. Levada de novo para a cela, sentiu que tinha entrado em trabalho de parto e começou a gritar. Os outros presos, solidários, gritaram junto. Foi então conduzida para o Hospital de Guarnição de Brasília, onde um médico chamado Trindade a recebeu. "Ele disse que realmente a bolsa tinha rompido, mas que não faria o parto, não. Argumentei que meu filho iria morrer, e ele respondeu que seria ‘um comunista a menos’." E prescreveu um soro, que ela suspeitava conter algo para retardar o parto. Por isso, recusou-se a tomar, pelo menos até que um guarda com metralhadora a convenceu do contrário. Quando a deixaram no quarto sozinha, ela arrancou a medicação com os dentes. Finalmente, na madrugada do dia 13, foi levada para a sala de parto, acompanhada do cara da metralhadora, como se uma mulher prestes a dar à luz pudesse fugir. Foi um parto sofrido. Segundo ela, o médico fez o corte na vagina e a sutura sem anestesia (mais tarde soube que foi usado um fio cromado grosso, completamente inadequado para o procedimento). "Foi muita dor!", ela se lembra. O menino nasceu e foi logo tirado da sala: ela mal pôde vê-lo. Logo depois, sete oficiais chegaram para interrogá-la, mas, meio grogue, ela não conseguia falar direito. Começou então um jogo. Ela insistia em querer ver o filho e amamentá-lo, e eles alternavam: um dia o levavam, outro, não, para forçá-la a falar. Sua angústia aumentava porque antes os torturadores diziam que, se nascesse "homem, saudável e branco", ficariam com ele. "Eu torcia para que fosse uma menina." O menino nasceu com peso normal - 3,150 quilos - e uma infecção purulenta nos olhos devido às 27 horas em que ela ficou com a bolsa rompida. Pouco tempo depois, porém, desnutrido, com gastrenterite e muita diarréia, Joca passou a pesar 2,700 quilos. "Parecia aqueles meninos da África, só que lourinho de olho azul. Era um bebê muito ossudo." Ele, que no começo chorava forte e quase não dormia, passou a dormir direto, a quase não chorar e, quando chorava, era apenas um gemido. O pediatra dizia que não era nada. "Consegui saber então, por uma auxiliar de enfermagem (Criméia é enfermeira), que estavam dando tranqüilizante para ele." Fez um escândalo e reivindicou para o filho a condição de preso político, como ela. Joca acabou sendo retirado da prisão por uma tia, que apareceu por lá com a filha e o genro, levada pelos militares. Criméia não tinha qualquer intimidade com ela, que ainda por cima era de direita. A mãe não queria deixar o filho sair sem estar registrado, e o tenente não queria permitir. "Ele dizia que meu filho seria adulto quando eu deixasse a prisão." Finalmente, ela conseguiu que a criança fosse registrada, mas sem o nome do pai. Em Brasília, Criméia não sofreu tortura física, talvez porque não quisessem tirar mais nada dela, já que tinha se passado muito tempo da guerrilha. Preferiram torturá-la psicologicamente. "Eles projetavam os slides dos guerrilheiros mortos, alguns decapitados. A cena que mais me chocou foi a que mostrava as pernas dos militares de coturno, farda camuflada, tirando de sacos, pelo cabelo, as cabeças com sangue. E eu conhecia alguns. Isso ainda me acompanha. Até hoje tenho pesadelos com a cena. Foi a pior coisa que já vi." No dia 20 de abril de 73, quatro meses depois de ter sido presa, Criméia foi solta e pôde se juntar ao filho na casa da tia, em Belo Horizonte. João Carlos de Almeida Grabois, o Joca, hoje está casado, não tem filhos e é administrador de empresas. Até os 10 anos, freqüentou neurologista. Isso porque, ainda pequeno, tivera convulsões, gritava, chorava, sofria pesadelos que o faziam recusar-se a dormir. Aos 4, ele se lembra, quis saber o nome do pai. Sua mãe disse, mas pediu segredo. Se alguém perguntasse, ele diria "José Carlos", que era o codinome do pai na clandestinidade. "Não diz que ele morreu na guerrilha do Araguaia, a gente não sabe com quem está falando." Criméia temia que ele sofresse um seqüestro ou coisa assim. "Ela ficava muito nervosa quando eu saía para brincar. Se eu me atrasava jogando bola, ela ficava brava. Quando comecei a andar sozinho, ela se preocupava muito. Ao mesmo tempo, tinha que trabalhar e me deixava só em casa. Eu sentia que não era uma preocupação normal. Mas entendia, porque minha mãe sempre foi bem clara. Ela contava muitas histórias do Araguaia antes da gente dormir, eu e meus primos. Eu não gostava muito porque achava que ela ia morrer. Aí ela falava de coisas mais tranqüilas, como o cachorro que ia pescar com eles. As histórias de confronto, de quando chegou o Exército, essas eu fui conhecer bem mais à frente." A franqueza da mãe, o fato de não ter se casado de novo, a relação de amizade e confiança que estabeleceu com o filho único, tudo isso contribuiu para que Joca tivesse uma infância mais ou menos normal. "A gente foi sempre muito próximo. Nós vivíamos juntos, e havia muita confiança entre nós. Nunca teve esse negócio de esconder o que tinha acontecido. Eu tinha consciência de tudo." Além disso, outros amigos de Criméia viviam na mesma situação. "Tinha amigo meu com nome trocado também, e com o pai ou a mãe na clandestinidade. A afinidade fez do grupo uma comunidade. Eu não me sentia diferente." Só há dez anos Joca foi ler o diário que a mãe escreveu enquanto estava presa. Ao lembrar, ele se emociona: "A forma como ela escreveu, como se fosse uma despedida, dizendo que gostava de mim, meio num tom de que a gente não ia se ver... só de lembrar dá uma... Mesmo sabendo que ela está aqui, a alguns metros de distância, é complicado". Ele levou anos para ler as vinte páginas escritas com letra pequena, para aproveitar bem o papel. "Lia um pouco, parava, lia mais duas páginas, parava, esquecia que tinha o diário, aí voltava, dizia - agora vou ler. Um dia, parei, sentei e li tudo. É mais uma recordação, uma carta de despedida dizendo que gostava de mim. Que gostaria de estar comigo. Não tem teor político, é mais um carinho, um adeus", termina, em voz embargada. João Carlos, que passou a infância sem poder dizer que o nome de seu pai era André Grabois, obteve o registro de paternidade na Justiça. Ficava buzinando no ouvido da mãe: "Quero o nome do meu pai aqui". "Para mim era importante, por ser uma forma de resgatar a história dele e a minha também. Aí, quando eu tinha 16-17 anos, conseguimos - e sem usar no processo o artifício da morte presumida: a gente queria que o Estado reconhecesse que ele foi assassinado, onde foi assassinado, onde foi enterrado, e em que circunstâncias. Para mim foi muito simbólico, muito importante." Também na Justiça, ele teve reconhecida sua condição de torturado antes de nascer. Em 2005, o médico pediatra Henrique Carlos Gonçalves, representante do Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo e membro da Comissão Especial de Anistia da Secretaria da Justiça, concluiu, baseado em sustentação técnica e jurídica, que o feto humano também "goza das salvaguardas legais do Direito". O seu laudo diz: "O requerente, filho de uma mãe que sofreu sevícias durante a gravidez, é o titular de um direito ao reconhecimento das torturas que suportou com a mãe. Ora, gestante e gestado são vítimas e detentores do direito ao reconhecimento da prisão e das torturas". Em sentença única na jurisprudência brasileira, João Carlos de Almeida Grabois recebeu do Estado uma indenização simbólica de R$ 22 mil. Criméia conta que foi um choque quando ouviu Joca dizer em uma entrevista que somente com a sentença se deu conta do que acontecera com ele nos tempos da ditadura. "Apesar de tudo o que falei, foi preciso um papel para que a ficha caísse." O filho se explica: "Eu pensava: ‘Puxa, escapei. Meu primo, minha prima, minha tia, meu tio, meu pai, minha mãe, eles pegaram uma barra maior’". Joca achava que "não tinha tido essa passagem". Para ele, seus primos eram os que haviam sofrido: foram seqüestrados, presenciaram os pais sendo torturados, foram torturados eles mesmos. "Realmente, por mais que ela contasse, foi preciso o papel para a ficha cair." Do ponto de vista político, toda essa vivência deixou marcas de pessimismo em Joca - que, como admite, pode ser uma conseqüência emocional e não racional de tudo o que viveu. Ele não acredita nem no voto nem na luta armada. Acha que por esses caminhos "a gente não vai chegar muito longe", embora prefira mil vezes a democracia a qualquer ditadura, seja do proletariado, do empresariado ou dos banqueiros. "Eu sou totalmente anarquista. Sou uma pessoa de esquerda, progressista, mas não acredito em nenhum tipo de representação nem em partidos políticos, nenhum deles, sem exceção. Não acredito em Maquiavel. Não acho que os fins justifiquem os meios. Pelo contrário, os meios é que justificam os fins." Do ponto de vista pessoal, Joca sempre recusou o papel de vítima. Nada o incomodava mais do que o olhar de "tadinho do Joca" que às vezes ainda recebe e que continua a incomodá-lo. Ele se considera um privilegiado por ter conseguido estudar, se formar, ter uma família. "Quantas pessoas conseguiram isso sem mesmo estarem envolvidas em política? Não acho que tenha ficado anormal. Quem sofreu foi a sociedade inteira, que teve seus direitos cassados, não pôde votar, participar. E é vítima até hoje. Eu consegui passar disso, o Brasil, não. Continua subdesenvolvido, carente. São 180 milhões de vítimas. Essa não é a minha história, é a história de todos nós."

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