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Leia a íntegra de artigo publicado no 'Suplemento Literário'

'Ausencia de Tolstoi', fala sobre adaptação para as telas de 'Guerra e Paz', principal trabalho do russo Tolstói

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Por Redação
Atualização:

P.E. Sales Gomes, autor de artigo publicado em 1.2.1958

 

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SÃO PAULO - O espetaculo cinematografico Guerra e paz oferece ocasião para o prosseguimento do debate em torno da validez da transposição de obras literarias, que é uma constante do cinema desde os seus primordios. Ainda hoje, apesar do apreciavel desenvolvimento da profissão de escritor cinematografico, calcula-se em mais de um terço do total o numero de fitas cujo ponto de partida é uma obra literaria. A já longa experiencia demonstra não existir relação necessaria entre o nivel artistico do texto literario e o de sua adaptação cinematografica. "The Clansman" e "The Leopard's Spots", duas novelas mediocres, e o proprio nome do autor, Thomas Dixon, são lembrados apenas porque foram os textos de base que Griffith utilizou em O Nascimento de uma Nação. O romance "Me Teague", de Frank Norris, há pouco reeditado, ocupa no panorama da cultura moderna uma posição incomparavelmente modesta frente a Greed, sua transposição para o cinema realizada por Stroheim. Por outro lado, a mediocridade ou as qualidades artísticas do original e da adaptação podem ser equivalentes, como foi o caso de Gone with the Wind de Le Diable au Corps, de Radiguet, filmado por Autant-Lara. Existem finalmente os casos em que os filmes são inferiores aos textos que os inspiraram, sendo essa a regra para as incontaveis vezes em que o cinema se aventurou a interpretar as obras-primas da literatura. O fenomeno é logico, e valerá a pena examiná-lo mais de perto em outra ocasião, bastando por ora lembrar que não tem relação com a tão falada especificidade da literatura ou do cinema, ou com a pretensa incomunicabilidade entre os dois generos. Se até hoje as adaptações de Stendhal à tela têm sido mais ou menos infelizes, algumas passagens de Senso, de Visconti, que não tem ligação direta com a obra stendhaliana, refletem as ricas possibilidades de um "beylismo" cinematografico. Ultimamente, aliás, tem havido filmes cujo nivel artistico nada tem de afrontoso aos textos classicos que os inspiraram. Não é tanto em algumas boas adaptações de Shakespeare que penso, mas sobretudo nos filmes onde o respeito formal pela obra original foi substituido por um esforço de fidelidade ao seu espirito, como no II Cappoto, de Lattuada, inspiração em Gogol, ou na fita de Kurosawa baseada em "O Idiota", de Dostoievski.

 

A insatisfação que nos causa Guerra e paz não se deve a nenhuma vulgarização excessiva. O nivel do espetaculo é alto sob muitos aspectos, as personagens e situações que comporta foram todas calçadas no romance. Na maior parte do tempo, porém, o espirito que Tolstoi lhes inculcara se evaporou na transposição. Houve ainda algo pior do que a incapacidade em captar a natureza das personagens ou o sentido das situações: em algumas sequencias a fita procurou valorizar precisamente aquilo que nas passagens correspondentes o romancista negou e destruiu, como os clichês historicos convencionais herdados do romantismo, pelos quais Tolstoi tinha horror. Exemplo característico é a cena em que, pouco antes da batalha de Borodino, Napoleão recebe da imperatriz o retrato do filho. Tolstoi faz a descrição de acordo com os relatos históricos, mas procura demolir o lado "image d'Epinal" do episodio, tentando para isso imaginar os pensamentos do imperador naquele instante: colocado diante do retrato, ele age sabendo que o que então disser ou fizer ficará registrado na historia. A contemplação muda, seguida da exclamação comovida: "o Rei de Roma!", e finalmente a ordem de cobrir o retrato para que o filho, muito jovem, não assista a batalhas, tudo, segundo Tolstoi, foi calculado para o efeito dramatico. Ora, na fita o comportamento de Napoleão é levado a serio e a cena é recomposta exatamente na forma contra a qual o escritor russo se insurgira.

 

Tolstoi se esquivava das convenções sentimentais não só nos episodios historicos mas também nas passagens propriamente romanescas do livro, como se vê na morte do principe André. Quando lhe trazem o filho para o ultimo adeus, a cerimonia não tem para ele a menor importancia emocional. Se alguma coisa ainda o prendesse à vida, seria o amor por Natacha, mas na realidade suas derradeiras reflexões não têm muita relação com situações terrenas. Ele beija e abençoa o filho unicamente para satisfazer ao que se espera de um agonizante. Na fita procura-se a autenticidade dramatica de gestos ditados pelas convenções, desvanecendo-se dessa forma o drama verdadeiro, o "simples e solene misterio da morte".

 

Algumas idéias gerais caras a Tolstoi, metodica e insistentemente repetidas no livro, são frontalmente negadas pela fita. O escritor considerava a ciencia militar como um "bluff" irrisorio, e não via relação de causa e efeito entre a vontade dos individuos - fossem eles Napoleão. Alexandre ou Kutusov - e os acontecimentos historicos, mesmo algumas batalhas bem delimitadas no tempo e no espaço. Admirava Kutusov porque o sentia proximo de suas idéias. Diferentemente de Napoleão, que sempre fazia planos e dava ordens, o generalíssimo russo tomaria o minimo de iniciativas, procurando às apalpadelas sentir o rumo espontaneo dos acontecimentos para a eles se adaptar de forma quase passiva. Como figura humana o Kutusov da fita é uma personagem intensamente "tolstoiana", porém os realizadores cinematograficos o fazem, desde Austerlitz, prever lucidamente o rumo dos acontecimentos, e agir em consequencia, assim destruindo todo o pensamento não-conformista de Tolstoi sobre o mecanismo da historia.

 

King Vidor só leu "Guerra e Paz" depois de ser consultado para dirigir o filme. O mestre americano já declarou ter dirigido varios filmes "exclusivamente do ponto de vista de um carater" e estar satisfeito com os resultados desse metodo. Como ele influiu bastante na fita, desde a elaboração do roteiro, sua familiaridade de ultima hora, necessariamente superficial, com o romance, assim como suas preferencias metodologicas, marcaram bastante o resultado final. O estudo de Aldo Paladini (1) sobre os sucessivos tratamentos da história mostra que o primeiro, escrito por italianos, procurava conservar-se fiel ao espirito de Tolstoi. Os ingleses, encarregados do segundo tratamento, deram as costas a Tolstoi ao procurar, por exemplo, desculpar a subita e devoradora paixão de Natacha por Anatolio Kuraguine. O papel de Irving Shaw, autor do roteiro definitivo, foi estabelecer um compromisso entre as duas tendencias. De qualquer forma, de acordo com o esquema de King Vidor, o filme precisou ser construido em torno de uma personagem. Se existe no romance uma figura principal, é certamente a de Pierre Besuchov. Mas sua escolha iria contra as normas habituais do espetaculo cinematografico, ao passo que a de Natacha as satisfaria todas. Na grande sinfonia tolstoiana, Natacha é um tema lirico menor. A fita construiu-se em torno dela, se bem que a fidelidade, mesmo desvirtuada, a Tolstoi, tenha obrigado os realizadores a tentar desenvolver um pouco os tipos de Pierre e do principe André.

 

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A reconstituição dos ambientes foi empreendida com um gosto e uma fidelidade estilistica notaveis, o mesmo acontecendo com as roupas, exceto as de Natacha, executadas segundo um acentuado criterio de modernização. O relevo excessivo dado à personagem e sua modernização facilitaram sobremaneira o golpe final desferido contra Tolstoi pelos realizadores da fita: em vez da atriz encarnar a personagem, é Natacha que se transforma em Audrey Hepburn.

 

O desconfiado Tolstoi não ficaria surpreendido com esses dissabores. Numa carta escrita a seu amigo. Pogodine em março de 1868 (2), explica que as idéias que vivificam "Guerra e Paz" não são o paradoxo de um instante, mas o fruto do trabalho intelectual de toda a sua vida até aquele momento. Ele prevê porém que "o que elogiarão no meu livro será uma cena comovente com uma senhorita, ou tolices do mesmo genero. O essencial será ignorado".

 

(1) Guerra e Pace, Cappelli editore, 1956.

(2) Citada por Pierre Pascal na introdução da edição Pléiade.

 

Nota: Liev Nikoláievich Tolstói (1828-1910) e sua célebre residência de Iásnaia Poliana aparecem num filme iniciado no dia 28 de agosto de 1908 – data do 80º aniversário do escritor – por Aleksandr Osipovich Drankov, e complementado por cenas registradas posteriormente (veja no site do Tolstoy Studies: www.utoronto.ca/tolstoy/tolstoyfilm.html). Paulo Emilio Sales Gomes escreveu em 1967, com sua mulher, Lygia Fagundes Telles, uma adaptação para o cinema de Dom Casmurro (Capitu), filmada por Paulo Cesar Saraceni.

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