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Laudo: imagem não é de Aleijadinho

Por Agencia Estado
Atualização:

O Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) rejeitou pedido do Museu de Arte de São Paulo para legitimar como sendo do escultor Aleijadinho uma peça doada ao museu em novembro. A decisão do Iphan se baseia em laudo da historiadora Lygia Martins Costa, uma das maiores experts no barroco e em Aleijadinho no País. Ao recusar legitimar a escultura de São Francisco de Paula como sendo um Aleijadinho, o Iphan deu base a que o Ministério da Cultura recusasse também o enquadramento da doação da obra ao Masp ? pela empresa Pirelli ? na Lei Rouanet. O que era um Aleijadinho estimado em US$ 350 mil passou a ser uma peça de autor anônimo estimada em R$ 80 mil. A Pirelli teve que cobrir a diferença ? cerca de US$ 300 mil. A escultura pertencia a um antiquário paulistano, que a comprou de um colecionador particular do Rio de Janeiro e a revendeu à Pirelli. Até sua doação ao Masp, em novembro, era tida como uma obra "atribuída a Aleijadinho", mas até isso lhe é negado agora. "Eu não atribuo; não é de fato um Aleijadinho", disse a especialista Lygia, em entrevista ao Estado por telefone, do Rio de Janeiro, onde vive. "Não é porque não tem a alma, a força, a expressão que vem de dentro e que se projeta, típica do Aleijadinho ? é uma peça passiva, e o Aleijadinho nunca é passivo", afirmou. Lygia Martins Costa também não crê que a peça possa ter sido feita por um discípulo mais virtuoso do mestre mineiro. "Os discípulos dele eram canhestros, e esse artista é mais erudito", ela diz. "Embora erudito, no entanto, não chegou à linguagem espiritual, à força expressiva do Aleijadinho", pondera. Falta o essencial - Ela diz que é "uma boa peça", mas muito aquém da obra do escultor. "Se fosse dele, seria muito fraca, uma obra menor do mestre, porque lhe falta o essencial." No laudo em que desaconselha a autoria da peça, ela cita diversas diferenças e diz que, a princípio, lhe "repugna" aceitar dar atribuição maior à escultura. "Falta-lhe qualquer rasgo de ousadia, aquela chama espiritual que trespassa a linguagem plástica coerente e dinâmica do Mestre e proclama uma poderosa individualidade", ela diz. "Pelas proporções e o arabesco mais do que ao século 18 parece ligar-se aos meados do 19, e ainda à mesma época pela indefinição morna tanto da atitude quanto da expressão fisionômica." O presidente do Museu de Arte de São Paulo, o arquiteto Júlio Neves, foi procurado pela reportagem do Estado, mas não retornou as ligações para comentar o caso. No ano passado, o Masp e a Pirelli fizeram grande campanha publicitária para divulgar a doação, que julgavam uma das mais importantes feitas ao museu nos últimos anos. Também na Pirelli não foi possível falar com o presidente da empresa sobre a decisão do Iphan. Segundo Aldo Bertolucci, executivo da Pirelli, só o presidente da empresa, Giorgio Della Seta, está autorizado a falar pela fábrica, mas ele não foi localizado pela reportagem. Luciano Ramos, chefe de comunicação do Iphan, informou que a decisão do órgão é técnica e poderia eventualmente ser revista, caso aparecessem fatos, exames ou laudos novos que permitissem essa revisão. O parecer do Iphan é assinado por Thays Pessotto, coordenadora de conservação do Departamento de Proteção do Iphan e reúne ainda um arrazoado de Antonio Leon Filho, da Leone Galeria de Arte, sugerindo o rebaixamento do preço da peça. Leon chama o Aleijadinho de "Francisco Antônio Lisboa." A recusa do Iphan e do Ministério da Cultura em dar o status de verdadeiro Aleijadinho à imagem do Masp reacende uma fogueira de vaidades entre os expertises do mestre do barroco mineiro. O professor Dalton Sala, mestre em História da Arte e Doutor em Ciências da Comunicação pela Escola de Comunicações e Artes da USP, instado a fazer um laudo sobre a obra, diz tratar-se inequivocamente de um Aleijadinho. "A imagem de São Francisco possui, como foi demonstrado, um conjunto sólido de estilemas próprios da obra escultórica atribuída a Antônio Francisco Lisboa", escreve Sala. Colecionador - O colecionador Renato Whitaker, dono de uma coleção de cerca de 30 peças atribuídas ao mestre, também acha que trata-se de um Aleijadinho. "Não há dúvida", diz o colecionador. Whitaker chega à suas conclusões sobre as peças enumerando cerca de 37 características que definem bem uma escultura do artista mineiro. Ele encontra, na peça do Masp, características iguais de pelo menos 36 outras obras do artista em Congonhas do Campo, Mariana, Sabará e Ouro Preto. E mais: propõe que sua avaliação suba de US$ 350 mil para US$ 2 milhões, com base em estimativas da Christie?s de Nova York, da Bradesco Seguros (feita para peças exibidas na 25.ª Bienal de São Paulo) e da Generali Assicurazioni Generali para a mostra Brésil Baroque, realizada este ano no Petit Palais, em Paris. O tiroteio crítico tem origem em dois laudos anteriores. Orlandino Seitas Fernandes, antigo conservador do Museu da Inconfidência de Ouro Preto, foi pioneiro em atestar como sendo do mestre mineiro a peça. O laudo fez com que um dos maiores especialistas internacionais em Aleijadinho, o francês Germain Bazin (já morto), incluísse na sua obra sobre o escultor um adendo, acrescentando comentário sobre o "novo" trabalho. Bazin, então curador-chefe do Museu do Louvre escreveu, em seu estudo sobre o escultor brasileiro, O Aleijadinho e a Escultura Barroca no Brasil (Editora Record) que "não se pode encontrar expressão mais típica dos corpos, própria dos personagens esculpidos pelo Aleijadinho". Mesmo assim, segundo Lygia Martins Costa, há hesitação no juízo de Bazin. "Vê-se claramente que ele fica sem uma definição correta", afirma a especialista. E o curador francês só se manifestou após o laudo de Orlandino Seitas Fernandes. A imagem de São Francisco de Paula do Masp tem 94 centímetros de altura e base de 6 centímetros. Veio da Igreja de Santa Ifigênia de Ouro Preto e não possui os artelhos do pé esquerdo, assim como também não tem o grosso artelho e parte do índice do pé direito. O Aleijadinho - Antônio Francisco Lisboa nasceu em Ouro Preto (MG) em 1738 e morreu em 1814, aos 76 anos, de uma doença degenerativa, que o fez perder progressivamente os dedos das mãos e dos pés. Ele gozou de perfeita saúde até os 40 anos e foi iniciado na escultura pelo pai, o mestre de carpintaria português Manuel Francisco Lisboa ? de quem era filho ilegítimo com a escrava Isabel. O Aleijadinho sabia ler e escrever, tinha noções de latim e conhecimentos de desenho, arquitetura e escultura, adquiridos na escola do pai. Com a intensificação da doença, teve uma morte terrível, perdendo gradativamente os dedos dos pés (passou a andar de joelhos), depois os das mãos atrofiaram-se e, por fim, restaram apenas os polegares. A primeira menção histórica relativa à carreira artística do Aleijadinho, segundo escreve Myriam Andrade de Oliveira em Passos e Profetas (Edusp, 1984), data de 1766, quando ele recebeu importante encomenda da igreja de São Francisco de Assis de Ouro Preto. "Um exemplar raro de unidade de estilo no período barroco-rococó", escreve ela. O escritor francês Dominique Fernandez, apaixonado pela obra do escultor, definiu-o em livro como "um artista do porte de Michelangelo e de Bernini", o último deles, justamente, um dos grandes mestres do estilo barroco. Fernandez o descreveu como uma mistura de Lázaro, o leproso de que se fala no Evangelho; Quasímodo, o personagem de Victor Hugo; e Lúcifer, o chefe dos anjos rebeldes.

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