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Kundera discute o reencontro impossível com o passado

Em A Ignorância, os dois personagens centrais, assim como seu autor, são obrigados a deixar a Checoslováquia em 1968. De volta ao país, findo o exílio, tentam em vão reencontrar o que já definitivamente perderam

Por Agencia Estado
Atualização:

Milan Kundera é um escritor que guarda o exílio dentro de si. Não dá entrevistas, não fala em público, não comparece a eventos literários e justifica essa postura com o argumento, discutível, de que a obra basta, que o autor não deve interessar a ninguém. Essa cisão, adotada também por outros escritores de renome, além dos motivos que ficam no domínio da timidez e da vaidade, lhe confere o ar de um eterno exilado - ele que foi um emigrado político da República Checa. A posição de Kundera, que se oculta atrás de seus livros, faz lembrar o famoso comentário de Mário de Andrade: "Todo escritor acredita na valia do que escreve. Se mostra, é por vaidade. Se não mostra, é por vaidade também." Após a invasão soviética na Checoslováquia, em 1968, Milan Kundera, já então um escritor com livros publicados que servia como funcionário do Instituto Cinematográfico de Praga, foi obrigado a exilar-se. Sua obra também foi proibida em seu país. Como ele, os dois personagens centrais de A Ignorância, Irena e Josef, deixaram a Checoslováquia após os acontecimentos de 68. Irena exilou-se na França, Josef, na Dinamarca. Vinte anos depois, eles retornam a Praga - e o romance de Kundera é o relato desse difícil retorno e uma meditação a respeito de seu significado. A relação entre sua experiência pessoal e a aventura de seus personagens não precisa ser explicada, cabendo lembrar que o Kundera já disse que toda literatura "se volta sempre para o enigma do Eu". Ele também não acha adequado que suas narrativas sejam consideradas, como acontece com freqüência, como "filosóficas", embora elas venham sempre pontuadas por meditações de fundo literário, ou existencial. "Eu nunca deixarei de dizer que a única razão de ser do romance é dizer aquilo que apenas o romance pode dizer", já declarou. Ao contrário da ciência, porém, a literatura não lidaria com a existência, mas com as "possibilidades da existência". Com tudo aquilo que podemos vir a ser, ou que podíamos vir a ser, mas de que, por fraqueza ou por descuido, abdicamos. Existência - De todo modo, o tema de Kundera - e, mais que em nenhum outro livro, nesse A Ignorância - é a existência. Não a vida plena, pontuada por fatos coerentes, sob o domínio da lógica e da harmonia, que é apenas uma idealização; mas a vida cheia de furos, hiatos, descontinuidades, eventos inexplicáveis, obscuridades, como de fato é. Ao retornarem a Praga, Irena e Josef trazem consigo a esperança, vã, de reencontrar o que foram. Ocorre que nem a Checoslováquia é mais o mesmo país de 20 anos antes, nem eles são mais as mesmas pessoas - e o pouco que conseguiram guardar em suas memórias, e que agora anseiam por reencontrar, foi em parte destruído ou modificado pelo tempo, ou pela própria memória. A Ignorância de que fala o título do livro é, enfim, a memória que se mostra frágil e insuficiente. No caso dos exilados, essa inoperância produz um fracasso duplo: o exilado nunca chega a fazer parte do país para o qual migrou; mas, ao retornar, não voltará a se encontrar com aquele que abandonou. Kundera é um defensor declarado da imaginação, contra as explicações racionais e as fórmulas literárias. Para ele, foi pelo esforço intelectual em explicar a obra de Kafka, o mais importante autor nascido em Praga, que muitos leitores não chegaram realmente a lê-la. Ao contrário, sempre sentiu forte aversão por aqueles que reduzem as obras às idéias que elas, por ventura, possam vir a conter; à idéia, Kundera afirma sempre preferir a obra. É na obra, e não fora dela, em comentários e interpretações posteriores, que a idéia deve tomar corpo e se realizar. Sentimentos - A idéia que move A Ignorância é a da impossibilidade do retorno. Kundera equipara Irena e Josef, seus protagonistas, ao Ulisses, de Homero. "Durante os vinte anos de sua ausência, os habitantes de Ítaca guardavam muitas lembranças de Ulisses mas não sentiam por ele nenhuma nostalgia", escreve. "Enquanto Ulisses sofria de nostalgia e não lembrava de quase nada." Os sentimentos dolorosos que afetam o herói da "Odisséia" o impedem de pensar e de recordar. Quem sofre, não treina a memória; apega-se à dor, mas, enquanto isso, esquece. Em vez de lembrar, apaga. Ao retornar a Ítaca, Ulisses, ao contrário das expectativas que acalentou, já não pode se reencontrar. Só então descobre que os anos de exílio o transfiguraram, que sua identidade agora está na aventura. "E, esse tesouro, ele havia perdido e só voltaria a encontrá-lo contando", Kundera diz. É a mesma sensação de deslocamento, de retorno ao lugar errado, ou a um lugar inexistente, que envolve Irena e Josef em sua volta a Praga. O passado não pode ser refeito. Eles não foram afastados temporariamente de uma cidade, mas a perderam para sempre. O esquecimento sempre foi um dos temas cruciais na obra de Kundera. É uma matéria infinita, com a qual tudo se pode moldar. Foi Milan Kundera, aliás, que assim definiu as três possibilidades elementares de um romancista: "Ele narra uma história (Fielding), ele descreve uma história (Flaubert), ele pensa uma história (Musil)". Narrar, descrever, pensar - eis os três instrumentos fundamentais do narrador e é por mesclá-los com habilidade e elegância que Kundera escreve romances leves, mas inquietantes, atordoantes, mas sempre fornidos de ironia e humor.

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