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Kerouac, os beats e o bop

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Por Redação
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Roberto Muggiati& JazzDIA 16/6GILBERTO MENDESERUDITADIA 23/6NEI LOPESSAMBADIA 30/6CLAUDIA ASSEFERUDITADIA 7/7PATRICIA PALUMBO MPBE vamos pegar carona de novo com Jack Kerouac. O filme Na Estrada, de Walter Salles, baseado no romance-manifesto da Geração Beat, On the Road, apresenta às novas gerações o movimento que trouxe a literatura para as ruas e injetou nela um novo sopro de vida. Um sopro que tinha muito a ver com os trompetes e saxofones do jazz: pela primeira vez, um movimento cultural se dizia influenciado diretamente pelo jazz. Não falta jazz nas páginas de On the Road. Charlie Parker, Lester Young, Dizzy Gillespie e Stan Getz são amplamente citados. O jazz é uma espécie de código secreto: "Sentado ali ouvindo aquele som da noite que o bop veio representar para todos nós, pensei em todos os meus amigos de uma extremidade à outra do país..." Kerouac insere até uma mini-história do jazz em seu romance: "Era uma vez Louis Armstrong soprando bonito como ninguém no lodaçal de Nova Orleans; antes dele, os músicos doidos que nas paradas festivas entortavam as marchas marciais e as transformavam em ragtimes..." Um fetiche particular de Kerouac é o pianista cego inglês George Shearing, apelidado de "Deus." Dean e Sal ouvem um show dele no Birdland de Nova York; 100 páginas depois, voltam a ouvi-lo em Chicago. Dean anuncia: "'Sal, Deus acaba de chegar.' Olhei. George Shearing. E, como sempre, estava com a cabeça cega apoiada na mão pálida, ouvidos bem abertos como orelhas de elefante, ouvindo os sons americanos e traduzindo-os para seu uso de uma noite de verão inglesa."Mas o jazz não é um mero tema. Para Kerouac, ele oferece uma técnica narrativa a ser transposta para sua própria prosa, que o poeta Allen Ginsberg chamou de "prosódia espontânea do bop". Segundo ele, "os músicos do bop estavam se adaptando à cadência da fala dos negros, que conversavam entre si através dos seus instrumentos. Kerouac levou isso para a linguagem falada, usando ritmos mais interessantes do que a poesia e a prosa impressas, para injetar as mesmas emoções da língua falada na língua escrita." O próprio Ginsberg menciona o jazz logo no início do seu poema mais famoso, Howl/Uivo (1956): "... pobres esfarrapados olheiras fundas e drogados fumavam sentados na escuridão sobrenatural de apartamentos miseráveis sem água quente flutuando sobre os telhados das cidades contemplando o jazz..."Kerouac foi bem mais explícito. Na abertura de seu livro de poesias México City Blues (242 Choruses), de 1959, escreveu: "Quero ser considerado um jazz-poeta improvisando um longo blues em uma jam session numa tarde de domingo." Um ano antes, num artigo intitulado Essência da Prosa Espontânea, ele descreveu seu método: "... linguagem é o fluxo mental tranquilo de ideias palavras pessoais secretas, improvisado (como o músico de jazz) sobre o tema da imagem, nenhuma pontuação, mas o vigoroso traço separando a respiração retórica (como o músico de jazz tomando fôlego entre duas frases), pausas marcadas que são a essência da nossa fala. Improvise tão fundo quanto quiser, escreva tão fundo, procure tão longe quanto quiser, satisfaça primeiro a si mesmo e o leitor também receberá o choque telepático e o significado-excitação pelas mesmas leis que operam na sua mente."É bom deixar claro o tipo de jazz que marcou Kerouac. Aos 18 anos, ele publicou no jornal da universidade um artigo sobre Glenn Miller. Tentou entrevistar o bandleader e surpreendeu-se ao vê-lo berrando palavrões como qualquer mortal. O jovem Jack gostava do som convencional das big bands do Swing. Foi através do amigo Jerry Newman, dono de uma pequena gravadora, que conheceu o bebop e despertou para a revolução cultural dos jovens músicos negros que criavam o jazz moderno. O culto da espontaneidade insinuava-se na nova estética do pós-guerra: na action painting de Jackson Pollock, no Actor's Studio de Brando e James Dean, na concepção cênica do Living Theatre, no cabaré satírico de Lenny Bruce, no jornalismo do Village Voice, nos cartuns de Jules Feiffer, na improvisação do bop e na literatura beat.Jack foi até homenageado com o título de uma das primeiras músicas gravadas do bebop, uma improvisação assinada pelo guitarrista Charlie Christian e pelo trompetista Dizzy Gillespie. Jerry Newman gravou-a ao vivo em 1941 no Minton's, uma boate do Harlem. Baseado na grade de acordes do standard Exactly Like You, o tema precisava de um título, para não pagar direitos autorais. Jerry sugeriu Kerouac. Mesmo desconhecendo Jack, Dizzy gostou do som e topou. (Para ouvir, é só buscar no YouTube: Charlie Christian plays Kerouac (sic).)Outras afinidades: Kerouac escreveu o texto original de On the Road num rolo de papel de 36 metros de comprimento, datilografando direto em 20 dias (de 2 a 22 de abril de 1950) - algo parecido a um longo solo de jazz, sem nenhuma interrupção no fluxo criativo. O beat que batizou o movimento vem igualmente de beat (beatífico) e beat (batida do jazz). A própria expressão "on the road" já era usada nos anos 1930 no jargão dos músicos de bandas, que viviam "na estrada", tocando cada noite numa cidade diferente.Kerouac não só foi o grande artífice da fusão jazz + literatura. Teve a sorte - graças à notoriedade de On the Road - de gravar vários discos, recitando acompanhado pelo piano de Steve Allen ou até dizendo haicais e cantando blues apoiado por seus dois saxofonistas favoritos, All Cohn e Zoot Sims. Com sua voz clara e envolvente, Jack transmite todo o seu fascínio pela palavra oral, pode-se até falar numa verbalidade orgástica. O movimento beat desembocou inexoravelmente na grande revolução mochileira dos hippies, no jazz&poetry e nos road movies, no rock de Lou Reed, Tom Waits, Rickie Lee Hones e Patti Smith e - por que não? - do velho Dylan, até hoje na estrada com sua Never Ending Tour, que completou 24 anos na quinta-feira, 7 de junho. A turnê interminável, que contou com a participação entusiástica de Allen Ginsberg. Na comemoração dos 25 anos de On the Road, Ginsberg disse: "Queríamos falar em público como fazíamos na intimidade, queríamos provocar um terremoto cultural." Quem sabe - sem se darem conta disso - os beats provocaram um tsunami na arte e na literatura do nosso tempo.

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