Kentridge, a história e seus tempos

Exposição do sul-africano reforça experiência de um mundo híbrido

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Por Redação
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O que confere parte da relevância de sua produção é a capacidade de reconquistar uma realidade sul-africana ambígua e turva – um aspecto que a aproxima bastante do Brasil – na própria trama de suas obras, o que reforça a experiência de um mundo realmente híbrido, composto de matérias que não se deixam nomear com facilidade.

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Como a curadora da mostra, Lilian Tone, deixa claro em seu texto, os desenhos de Kentridge são feitos por um processo de sobreposição e apagamento de linhas e traços que vão sendo fotografados para que daí se obtenha sua animação. O resultado desses procedimentos não é um desenho animado tradicional, mera continuidade, e sim uma dinâmica “suja”, na qual as figuras feitas a carvão e pastel azul surgem em meio a um fundo que se compõe das mesmas substâncias impuras de que parecem se livrar com dificuldade.

Ao mesmo tempo, esse modo de desenhar possibilita continuidades hilariantes: um gato que se transforma em telefone, rostos que se fundem com a paisagem urbana, lágrimas que se tornam pequenos peixes, tesouras que se põem a marchar, enfim, um desenho capturado no seu próprio processo de construção, uma característica central da arte contemporânea, no entender do filósofo e crítico de arte Alberto Tassinari.

A convivência, num mesmo trabalho, de uma descontinuidade rude, feita de supressões e superposições, e de uma continuidade cativante, as variadas metamorfoses por que passam suas linhas e traços, traz à tona uma história política extremamente realista, feita de sedimentações atípicas de difícil identificação e passíveis de inúmeras transformações. Difícil imaginar um modo mais esclarecedor de expor a complexidade de um país espesso como a África do Sul.

Mas há outras circularidades que permeiam sua obra. De fato, a história, as histórias (não existe apenas um tempo ordenando os fatos) são uma questão central do trabalho de Kentridge. Personagens emergem e submergem sem cessar em suas narrativas, sempre transformadas pelos distintos contextos: Soho Eckstein (uma espécie de representante grotesco da classe dominante sul-africana), Felix Teitlebaum (um duplo ambíguo do artista), as muitas formas de revolta da população local. Como no trabalho exposto no octógono da Pinacoteca, uma grande rotação conduz todo o seu pensamento, sem, no entanto, torná-lo esquemático, da engenhoca pesadona (que lembra bastante monjolos e moendas coloniais) que gira solitária e inútil no meio daquele espaço vazio à verdadeira obsessão com relógios, metrônomos e outros aparelhos usados para registrar o tempo.

Um metrônomo marca um compasso regular repetido cansativamente. Nada mais distante do ritmo histórico, seja ele qual for. Uma dezena de metrônomos pontuando compassos diversos, ao contrário, faz surgir uma sonoridade complexa, uma irregularidade tramada por batidas regulares e descompassadas. (É o que ocorre em Lição de Desenho 12.) E aí temos uma imagem quase insuperável dos tempos que comandam a história africana.

Em meio à realidade tenebrosa legada pelo Apartheid, que não perdemos de vista por um instante sequer, a arte de William Kentridge instila pelos mesmos procedimentos – aquelas circularidades falhas, as metamorfoses incompletas – uma graça e uma leveza que têm um pouco de Chaplin e um pouco de Beckett. Não se trata de rir dos desastres da guerra. E sim de evitar o que há de pior no pensamento conservador: a suposição de uma realidade que se quer monolítica, sem articulações ou fissuras.

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Há quem acredite que a história é uma velha gorda, má e devassa cujas saias bastaria levantar para que vislumbrássemos todo um passado de excessos e maldades. Para William Kentridge, é a nudez que oculta a realidade.

RODRIGO NAVES É CRÍTICO DE ARTE, ENSAÍSTA E FICCIONISTA

WILLIAM KENTRIDGEPinacoteca. Praça da Luz, 2, Luz, 3324-1000. 3ª a dom., das 10 h às 18 h (5ª, das 10 h às 22 h). R$ 6 (sáb., grátis). Até 10/11.

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