Kassel 2002 estimula a reinvenção de linguagens

A 11.ª edição da Documenta abre espaço para a criação de novos modelos de relacionamento entre arte, cultura e política no mundo globalizado

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Por Agencia Estado
Atualização:

O curador Okwui Enwezor alertou desde o início que um dos objetivos da 11.ª edição da Documenta seria criar espaços para a arte de dimensões social e política. Mais: estabelecer novos parâmetros para o cruzamento entre esta arte, a cultura e a política. Para quem visita a exposição fica claro que o nigeriano - primeiro não-europeu a dirigir o mais influente evento de arte contemporânea do mundo - não vê problemas em uma arte reflexiva, que funciona como resposta à situação vigente e aos dilemas do homem atual. Guiados pela mão forte de Enwezor, os artistas são levados a se posicionar diante da pergunta-chave: de que maneira as especificidades locais criam novas orientações para um planeta sem fronteiras? Se fosse possível definir um tema único - em meio às propostas apresentadas pelos 116 artistas que ocupam a pequena cidade de Kassel até 15 de setembro - ele seria globalização. Seguido por inúmeros desdobramentos: indústria do entretenimento, mestiçagem cultural, crise da metrópole, decadência do mundo contemporâneo, democracia, ditaduras, repressão política e tortura, justiça e reconciliação. Em tentativa inédita de deslocar o debate para lugares periféricos do globo, alentados simpósios antecederam a exposição, desviando as atenções para países culturalmente distantes da Alemanha, e entre si, como Índia, Caribe, Serra Leoa, África do Sul, Zaire e Nigéria. Batizadas de Plataformas, em número de quatro, antecederam o evento principal em oito meses de discussões interdisciplinares. Debates - A esperada "quinta Plataforma", a megaexposição de Kassel, grosso modo é a tradução formal das questões levantadas naqueles debates. A esperança desta Documenta, também sua utopia maior, é que se reinventem as formas de comunicação entre os povos, que se criem traduções possíveis para o relacionamento entre diferentes culturas do mundo globalizado. Enfim, a mostra abre caminho para que os artistas tomem em suas mãos a responsabilidade de reinterpretar o lugar da cultura na sociedade. Não é pouco. Mesmo que projeto de Enwezor seja pretensioso demais, segue a tendência das dez edições anteriores da mostra, que nasceu graças à ousadia de um curador de vanguarda e, em seus quase 50 anos de existência, teve a ambição curatorial como marca mais evidente. Historicamente um evento eurocêntrico, pela primeira vez há tantos artistas oriundos da América Latina, Ásia e África, com 50% do total. Se nas dez edições anteriores a porcentagem de nomes vindos de países europeus e dos EUA girou sempre em torno de 90%, desta vez sua participação foi reduzida à metade. É evidente que muitas obras estão ali nitidamente para atender ao projeto da curadoria e reafirmar a opção por uma Documenta com olhos para o Terceiro Mundo - por mais que Enwezor queira negar, as diferenças entre centro e periferia continuam a existir e a influenciar na produção artística. Um destes exemplos é o Igloolik Isuma Productions, grupo formado por esquimós do Canadá, cujos 13 documentários em vídeo revelam linguagem mais adequada a um programa do Discovery Channel. Este tipo de trabalho fica muito pouco à vontade ao lado de propostas como as de Louise Bourgeois, Candida Höfer e Tania Brugera (todas na antiga cervejaria Binding). O mesmo acontece com Frédéric Bouabré, da Costa do Marfim, dono de uma produção original de catalogação da cultura em extinção de seu povo, mas cuja obra costuma ficar isolada em exposições pelo mundo, como já aconteceu nas bienais de Veneza, Johannesburgo e Sidney. Há também muitos artistas engajados e grupos que "defendem causas", caso do coletivo Atlas Group, uma fundação fictícia que ironicamente coleta documentação sobre a história do Líbano; e Park Fiction, de Hamburgo formado por artistas, arquitetos e sociólogos que tentam emprestar novos significados e usos a espaços públicos perto do gigantesco porto da cidade. Bem-comportados - No conjunto da mostra, sobre o qual teve total controle, Enwezor atingiu plenamente seus objetivos. Já no pequeno universo delimitado em cada uma das obras, seu sucesso foi apenas parcial - o que paradoxalmente prova a qualidade dos nomes selecionados por ele e sua equipe de co-curadores (Ute Meta Bauer, Carlos Basualdo, Susanne Guez, Sarat Maharaj, Mark Nash e Octavio Zaya). Os artistas colaboraram, mostrando-se fiéis - por vezes submissos - às propostas da curadoria. A crítica existe, mas na grande maioria dos trabalhos é bem-comportada, buscando a adesão e não o confronto. Sinal dos tempos. Contudo, o estranhamento se faz presente em algumas obras, o que as destaca das demais, caso do vídeo da croata Sanja Ivekovic, Personal Cuts, em que uma mulher olha fixamente para o espectador, tendo o rosto coberto por um tule negro transparente, colado ao rosto, que ela puxa e corta com uma tesoura, abrindo pequenos buracos, como se ferisse a própria pele. Também é ousada a instalação do brasileiro Arthur Barrio, uma das salas mais concorridas. O brasileiro criou um ambiente escuro, instável, de dimensões e limites fluidos, obrigando o público a sujar os pés em grossa superfície de pó de café, que cobre o chão, forçar a vista para ler frases escritas à mão nas paredes (incluindo críticas ao poder da Documenta e o sistema de arte) e, por fim, procurar uma saída nos rasgos que o artista abriu nas paredes, revelando as entranhas do edifício. Em uma mostra de arte contemporânea como a Documenta, tudo parece ser permitido. Pelo menos na teoria. Como sempre, alguns artistas conseguem forçar os limites e deixar claro até onde vai a liberdade e onde começa o controle no mundo globalizado. É o caso do coletivo Tsunamii (www.tsunamii.net), de Cingapura, dupla de artistas (Charles Young e Woon Wei) que empreendeu uma viagem de carro, monitorada, de Kassel até Kiel, no norte da Alemanha, onde se encontra o provedor de Internet para o site da Documenta. No percurso, estabeleceram uma conexão entre a posição geográfica do veículo e um endereço na rede - a cada movimento corresponderia um site diferente, exibidos em um monitor instalado dentro da antiga cervejaria Binding, um dos espaços expositivos. A idéia é confrontar o espaço real com o espaço virtual. Como a relação é completamente aleatória, é impossível controlar o conteúdo dos sites, que eventualmente podem exibir páginas pornográficas. Alegando a possibilidade de material impróprio para menores, a Documenta resolveu censurar parte fundamental da obra: onde os espectadores veriam os sites, agora olham para uma página padrão do Explorer, imóvel, onde se lê, em inglês: "A página não pode ser exibida." Um dos avanços desta Documenta na questão das linguagens artísticas foi tensionar as fronteiras entre vídeo, cinema e documentário. Por exemplo, o filme em 35 mm do chinês Yang Fudong, An Estranged Paradise, se fosse apresentado em qualquer festival de cinema pelo mundo seria rotulado "filme de arte" (como acontece com a produção do cineasta russo Alexander Sokurov). Já o deslocamento para o contexto da Documenta permite leituras inusitadas de suas imagens, confundindo e ao mesmo tempo levando o espectador a questionar o olhar redutor que tenta categorizar imagens. O mesmo acontece na mão inversa, quando videoartistas por excelência, caso do inglês Steve McQueen, resolvem flertar com o gênero documentário - ele apresenta Western Deep, mergulho claustrofóbico no cotidiano infernal dos trabalhadores de uma mina de ouro, na África do Sul. Montagem - Quanto à apresentação dos trabalhos para o público, esta edição da Documenta encontrou um ponto de equilíbrio raramente visto. A excelente montagem ativa o conjunto, faz com que as obras dialogem de fato e amplia os níveis de percepção do visitante. Após algum tempo, estabelece-se uma conexão íntima entre os trabalhos, e deles com o espectador, em timing ideal. Não existe hierarquia: as criações respiram com liberdade e reafirmam sua força individual. Montar uma exposição de qualidade hoje custa caro, o que deve aumentar o abismo que nos separa dos EUA e Europa. Esta 11.ª edição foi orçada em cerca de 14 milhões de euros (a terça parte deste valor foi bancada pelo governo do Estado de Hesse). No último domingo, dia 28 de julho, a Documenta completou 50 dias de funcionamento (exatamente o meio do caminho dos tradicionais 100 dias de duração da exposição) e comemorou a marca de 302.765 visitantes. A preocupação da Documenta com a forma de apresentar as obras de arte remonta a sua fundação. Seu idealizador, o pintor e professor Arnold Bode (1900- 1977), deixou claro desde a edição inaugural (em 1955) que é preciso saber exibir os trabalhos para tirar deles o máximo de seu potencial, e assim desafiar e sensibilizar o público.

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