Juiz não é tão vilão como parece

Mostra no Museu do Futebol lembra como é ingrata a profissão de árbitro

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Foto do author Luiz Zanin Oricchio
Por Luiz Zanin Oricchio
Atualização:

Parece de propósito. No momento em que o Campeonato Brasileiro vive sua mais intensa polêmica, com a anulação do gol de mão de Barcos, do Palmeiras, pelo juiz Francisco Nascimento, o Museu do Futebol abre nova exposição, consagrada a ele, sua excelência, o árbitro de futebol. A exposição Será Que Foi, Seu Juiz? começa na terça-feira e, de forma criativa, fornece um excelente álibi às decisões controvertidas daqueles que, antigamente, eram chamados pelos narradores de "sua senhoria", o árbitro. A concepção da mostra é da equipe de conteúdo do Museu do Futebol. Conta com consultores muito especiais. A cenografia ficou a cargo de Vera Hamburger (de filmes como Carandiru e Deus É Brasileiro), a pesquisa é de Celso Unzelte, o vídeo com lances polêmicos, comentados por dois árbitros, Marcio Rezende de Freitas e Carlos Eugênio Simon, é do cineasta Carlos Nader (leia box abaixo). A exposição, distribuída por 300 m² no Estádio do Pacaembu, é feita de muitos módulos, alguns deles armadilhas à percepção. No início, o visitante se defronta com uma imagem, que só pode ser visualizada por completo de um único ponto. "É para ver a importância da posição do árbitro no momento de ver e julgar os lances do jogo", diz Clara Azevedo, diretora de conteúdo do Museu do Futebol. Em seguida, entra-se na exposição propriamente dita, através de um labirinto de espelhos. Outra armadilha para a percepção humana, em relação à qual nos sentimos muito seguros. Para os cinéfilos, a comparação será inevitável com o labirinto de espelhos de A Dama *de Shangai, clássico policial de Orson Welles. Passado o labirinto, chega-se à exposição propriamente dita, que contém filmes, alguns gadgets interessantes e painéis informativos. Fica entre esse trabalho mais ou menos subliminar com os limites da percepção humana e dados sobre a linha evolutiva dos árbitros de futebol. Ficamos sabendo, por exemplo, que os atuais juízes tecnológicos, de apitos e pontos eletrônicos nos ouvidos, tiveram seus ancestrais ainda no século 17. Os chamados maestri de campo eram incumbidos de "manter a paz e proceder a julgamentos nas disputas" do cálcio florentino, violento antecessor do nosso ludopédio contemporâneo. Já no contexto do futebol moderno, invenção dos ingleses, o juiz surge apenas em 1891. Mas ainda não era a autoridade máxima e suas decisões podiam ser contestadas pelos jogadores. Bem, ainda são contestadas, mas hoje o árbitro pode mandar os mais exaltados para o chuveiro. Antes não era assim. E era mais fácil sua senhoria sair do que um jogador badalado. Há resquícios dessa prática. Clara se lembra de um caso famoso. Em 1968, numa excursão do Santos pela Colômbia, o juiz resolveu expulsar Pelé de campo. Revoltada, a torcida local, que fora em peso ver o Rei, exigiu a volta do jogador e o árbitro é que teve de sair. Aos poucos o juiz foi sendo o que é, com a criação de regras, entidades de classe e até sistemas de arbitragem, como o deslocamento em diagonal pelo campo, surgido em 1924 com o mitológico Stanley Rous e usado até hoje. Pelo menos pelos juízes mais competentes. Os outros continuam se embolando com jogadores pelo gramado. Juízes já apitaram de casaca e polainas, de toucas e sapatos de verniz. Aliás, nem sempre apitaram. O apito foi incorporado tardiamente ao arsenal dos árbitros e nem se sabe direito quem teve ideia de usá-lo. Assim como a clássica cor preta dos uniformes, surgida após a 2.ª Guerra Mundial e hoje abolida em favor de tons mais alegrinhos. No Brasil, José Roberto Wright foi pioneiro da moda, ao trocar a camisa preta por um elegante azul ton sur ton no Campeonato Carioca de 1983. Algumas traquitanas foram montadas para convencer o público de que a função do juiz não é das mais fáceis. Há, por exemplo, um brinquedinho usado pela Fifa no treinamento de árbitros. Uma espécie de joguinho eletrônico no qual são apresentadas jogadas complicadas e a decisão sobre elas tem de ser feita em questão de segundos. O índice de erros é enorme. Há também aparelhos que simulam efeitos de paralaxe, mostrando a dificuldade em conhecer a exata posição da bola, ainda mais nas dimensões de um campo de futebol. Um efeito de pêndulo procura demonstrar como é difícil decidir em segundos se a bola entrou ou não no gol, o que tem ocasionado polêmicas através da história. A mais recente se deu na Copa do Mundo de 2010, quando a Inglaterra foi prejudicada pela não marcação de um gol que, àquela altura, seria o de empate com a Alemanha. Esse lance convenceu a Fifa da necessidade de introduzir recursos eletrônicos como o chip na bola que emite um sinal quando ela ultrapassa a linha da meta. "A exposição, na verdade, é uma grande instalação, para entender os erros do juiz como decorrência de efeitos óticos", dos limites da percepção humana, explica Vera Hamburger. Ao estudar o assunto, Vera se disse surpresa com a quantidade de variáveis óticas envolvidas num trabalho de arbitragem: "Um campo tem 120 metros de comprimento", espanta-se. "A questão não é saber por que erram, mas como conseguem acertar tanto!", diz. O físico Marcos Duarte vê na exposição um estudo sobre os limites da percepção humana da realidade - aqui aplicada no caso particular dos árbitros. "Acho que das exposições do Museu do Futebol esta é aquela em que a ciência mais está presente", diz. Marcos é autor do livro Física no Futebol, maneira didática de explicar as leis da natureza usando o jogo da bola como ilustração. Vera é consciente dos limites da percepção. "Na verdade, não tem erro e nem acerto, porque tudo é interpretação. Tudo depende do ponto de vista do qual você vê", diz Vera, que expressa, naturalmente, um ponto de vista artístico sobre a arbitragem. Com tudo isso, talvez os torcedores não fiquem mais conformados com os erros dos árbitros contra o seu time, porque a paixão humana é mais forte que a razão. Mas podem, pelo menos, compreender um pouco melhor as dificuldades dos nossos mal-amados juízes.

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