PUBLICIDADE

EXCLUSIVO PARA ASSINANTES
Foto do(a) coluna

Coluna quinzenal do escritor Ignácio de Loyola Brandão com crônicas e memórias

Opinião|Juiz exemplo para juízes

‘Sou graduado em Direito pela USP, turma de 1958, funcionário do Supremo Tribunal Federal’

Atualização:

Quando você olha a capa do livro Justiça Seja Feita e vê a foto pensa que vai ler a biografia de Paul Newman em seus áureos tempos. Um homem bonito, sereno, de olhos claros, compenetrado, rosto amável. De repente percebe que é Sydney Sanchez que foi presidente do Supremo Tribunal Federal, aquele que destravou um impasse político, em 1985, com a doença de Tancredo Neves, enfrentou o temível general Newton Cruz, e presidiu o impeachment de Fernando Collor em uma tarde de dezembro de 1992, com o Brasil de olho nele. Lembro-me que todos nós acompanhamos aquele julgamento, voto a voto.

PUBLICIDADE

Naquele dia, duas cidades do interior de São Paulo estavam especialmente emocionadas, Rincão e Araraquara. A primeira, onde Sydney Sanchez nasceu, a outra onde estudou, cresceu, formou a cabeça. Aquele “filho das duas” estava naquele momento entrando para a História do Brasil. Sempre digo que a vida traça pontos que parecem dispersos e sem lógica. No entanto, em certo momento, as linhas entre esses pontos se conectam.

Sydney é três anos mais velho do que eu, mas fomos do mesmo grupo, a certa altura, na década de 1950, ambos estudantes no Instituto de Educação Bento de Abreu. Eram tempos de serenata na madrugada, de angústia provocada pela mesmice dos dias, de indecisão do futuro. No desespero (leia náusea) mergulhávamos na cerveja e no Steinhäger nas mesas do bar do Pedro no Hotel Municipal. Ou nos enfiávamos todas as tardes na Biblioteca Municipal Mário de Andrade, vendo com estupefação um Sydney calmo, low profile, abrindo os numerosíssimos exemplares da Revista dos Tribunais, por nós considerada a coisa mais árida e chata do mundo. Afinal, éramos da imaginação, da fantasia, do delírio.

Não sabíamos o que fazer da vida, porém Sydney sabia, era focado, tanto que copiava trechos extensos à mão, por horas e horas, com lápis e caneta-tinteiro. Não existia xerox e a Bic ainda não havia chegado. Ele era considerado um CDF, admirado pelos professores, principalmente o Luciano, de latim, dos mais severos e rigorosos. CDF sim, porém Sydney jogava bem futebol, bebia, cantava embaixo das janelas das jovens, era paquerado no footing.

Depois que deixamos nossa terra, nos anos 1950, Sydney e eu nos reencontramos duas vezes. A última, recente, na Livraria Cultura, comprando livros. A outra, em 1978, quando fomos os únicos, de um grande grupo de amigos que foi ao velório de Raphael Luiz Junqueira Thomaz, de apelido Dedão, um guru de juventude, rebelde sem causa dos anos 1950 em Araraquara, poeta, discursador, um beatnik, quando a palavra ainda não existia. No velório, éramos a viúva, Sydney e eu. Mais ninguém. Hoje à noite, vamos nos reencontrar na Livraria Cultura do Iguatemi, quando sua biografia, escrita por Ricardo Viveiros será lançada. Duplo reencontro, uma vez que escrevi o prefácio do livro. Como imaginar na juventude nossas vidas se cruzando 60 anos depois?

Publicidade

Esse livro pode ser lido com prazer como aventura. Não há uma só palavra de juridiquês. Circulamos pelos labirintos das decisões judiciais, desde as mais simples, quando Sydney Sanches atuava em pequenas comarcas até o momento em que teve de atuar em momentos da mais alta gravidade para o Brasil. Enfrentou adversários de peso e, posso dizer, ameaçadores. Como presidente do TSE inaugurou o voto eletrônico no Brasil. Atuou na impugnação da candidatura de Silvio Santos à Presidência da República, fazendo um bem enorme ao Brasil, imaginem o País virar o SBT.

Penetramos nos bastidores, conhecemos o lado oculto das circunstâncias, as tentativas de manobras, acompanhamos a dificuldade de dar uma sentença, momento doloroso para Sydney, muitas vezes. Hoje, o Supremo está no centro de tudo neste país, ainda que pareça ter perdido a batalha contra a Câmara e o Senado. Mas um livro como este Justiça Seja Feita mostra como são os conflitos interiores, a cabeça de um magistrado, as dúvidas, os embates carregados de ideologia, os interesses pessoais e velados, o suor nos tribunais, as insônias, os pesadelos, a consciência, as frustrações e sensações de fracassos.

Segundo Viveiros, uma das marcas de Sydney era não assinar nada em cima da hora. De nada adiantava o assessor chegar afobado com um documento, pedindo: “Uma assinaturazinha aqui, ministro”. Ele apanhava o papel, alertava: “Não estou aqui para facilitar a vida de ninguém”. Segurava o papel, lia, relia, assinava ou não.

Esta é uma história, mais do que necessária, fundamental, neste momento. Como diz Viveiros, “é a trajetória de um homem correto, pleno de boa vontade e sempre determinado a olhar o próximo além de si mesmo, um homem que sempre buscou ser útil à sociedade e ao País”. Um filho de gente pobre, que, garoto, trabalhou como boy e datilógrafo de cartório, e vendo e ouvindo juízes atuando, sentiu sua iluminação e decidiu sua vida. Foi simples do começo até agora. Certa vez, numa reunião em que havia todo tipo de graduados importantes da República, vaidosos, cada um se apresentando com vastos currículos e autoelogios e cargos, quando chegou a vez de Sydney, ele disse simplesmente: “Sou graduado em Direito pela USP, turma de 1958, funcionário do Supremo Tribunal Federal”. E já era o presidente. Acrescento um episódio: Quantas vezes, já presidente, voltava para casa, apanhava um prato congelado, colocava no micro-ondas, comia e lavava a louça. Daí a frase com que foi definido pela ministra Ellen Gracie: “Juiz exemplo para juízes”.

Opinião por Ignácio de Loyola Brandão
Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.