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Jornalismo a sangue quente de John Reed

Por Agencia Estado
Atualização:

O homem que viveu apaixonadamente e desesperadamente os mais emocionantes momentos da curtíssima História do século 20, um dia parou, pegou a caneta com a qual deu cores e vida às revoluções mexicana e russa, passando pelos primeiros conflitos dos Bálcãs ? que desencadeariam a 1.ª Grande Guerra Mundial ? e a sangrenta greve dos trabalhadores têxteis de Paterson, e escreveu suas memórias. São invejáveis as lembranças do jornalista e escritor John Reed que, aos 33 anos, já havia presenciado e escrito sobre um México Insurgente e Os Dez Dias Que Abalaram o Mundo. Mais: Reed também viveu um grande amor com Louise Bryant em meio a esses conflitos que mudariam para sempre o discurso do mundo, dividindo-o em dois blocos até a queda do Muro de Berlim, em 1989. Uma divisão que voltaria a se desenhar com a globalização, só que aí seria a clássica ricos e pobres; e, é claro, seus apêndices emergentes vivendo no fio da navalha. Do amor, Reed escreve pouco, mas com suavidade, o suficiente para se vislumbrar a silhueta de Louise entre os fatos da sua história e a história da humanidade. Filho de uma abastada família do Oregon, o menino raquítico e de poucos amigos, nascido em 20 de outubro de 1887, teria tudo para ser mais um dos rapazes engomados, de sobrenomes ilustres, da vetusta universidade de Harvard, onde havia ingressado em 1906, com futuro traçado a compasso e régua pelos pais. A diferença é que, apesar da crença na manutenção do estado das coisas ? uma forma de proclamar vamos mudar, para ficar tudo como está ?, Harvard tinha a seu favor o fato de não estar alheia ao que ocorria no mundo. A realidade há muito havia rompido os muros dessa universidade, que participava ativamente do debate de questões importantes, procurando analisar os movimentos sociais da época, como o surgimento dos grandes sindicatos. Isso despertou em Reed o prazer de narrar os fatos, primeiro nos jornais da universidade, depois naqueles em que conseguia inserir seus poemas juvenis e sua visão dos acontecimentos. Também nessa época de ebulição e descobertas, Reed faz suas escolhas. Preferia estar com bêbados, intelectuais, artistas e vagabundos. Era assim que sua vida ganhava mais matiz e sentido do que aquela de fervilhantes salões de cores sombrias, tão apropriados aos olhos de sua família ou de qualquer uma de origem aristocrática ou emergente. Se Reed se entrega a essa troca de ambiente com paixão, ele também escreve com o coração e passa a acompanhar de perto os conflitos sindicais sem nenhuma isenção, pois preferia participar ativamente deles. Vê o desenrolar da greve dos trabalhadores das fábricas têxteis de Paterson e o massacre a que se sucederia, com a polícia atirando nos grevistas, matando homens, mulheres e crianças em 1913. Só que não resiste e não se permite manter isento, atira-se na luta contra a opressão do capital sobre as forças do trabalho num mundo ainda de regras arcaicas, de uma exploração vil. Toma partido. Vai preso. Será assim a sua vida daí por diante, ao cobrir e narrar, com paixão, as greves convocadas pela revolução mexicana, o conflito dos Bálcãs e a Revolução Russa de 1917. São alguns desses artigos, publicados em veículos americanos alternativos à grande imprensa que deram origem à coletânea Eu Vi um Novo Mundo Nascer (152 págs., R$ 22), que a Editora Boitempo está lançando neste inverno de altas temperaturas. E nenhum tempo, certamente, será mais quente do que aquele vivido por esse jornalista. Reed carrega nas tintas, briga para mostrar diferenças. Ao descrever, no entanto, aos 29 anos, o que havia vivido e o que estaria por vir, as cores de suas palavras são mais suaves, reflexivas e tocantes. Ler o seu artigo Quase Trinta, de 1917, é mergulhar no universo desse homem peculiar, que morreria de tifo aos 33 anos, sendo sepultado no muro do Kremlin, reservado aos heróis da revolução russa. Só por esse artigo, o livro valeria a pena, mas abre também uma discussão atual ao abordar o sindicalismo. Conflitos ? Uma das primeiras paixões de Reed é a Industrial Workers of the World (IWW), uma central de trabalhadores da indústria que pregava o sindicato único e a revolução socialista nos Estados Unidos. Uma luta que começava pelas 8 horas de trabalho e adentrava no direito à folgas remuneradas e férias, coisas que soavam bizarras para magnatas como Andrew Carnegie, o rei do aço, que vivia da renda que suas empresas produziam, povoando diariamente e nababescamente as colunas sociais da Europa e dos Estados Unidos. O que ajudava a incitar os ânimos dos trabalhadores metalúrgicos. Só que a IWW queria mais e é na tentativa de arregimentar estrangeiros, homens, mulheres, crianças, brancos, negros, judeus, católicos, protestantes, vagabundos e prostitutas aquilo que fazia com que Reed tivesse um olhar complacente para essa central e sua luta ideológica na disputa entre o capital e o trabalho. O radicalismo sempre acompanhou os textos de Reed, mas no caso do sindicalismo, ele era até certo ponto brando, pois a American Federation of Labor (AFL), a central que decidiu viver das benesses dos patrões, conquistando filiados realizando sorteios e a negociar com os patrões a lutar com os operários, fazia muito pouco nesse início do movimento sindical nos Estados Unidos. Reed a bombardeia com palavras, apesar do crescimento espetacular da condescendente e patronal AFL, que de apenas 100 mil filiados em 1890 chegaria a 2 milhões em 1914, com o olhar complacente da indústria dado ao colaboracionismo de seu líder Samuel Gompers, que preferia jantar com os patrões aos operários. Gompers não era atacado apenas por Reed, mas por vá[TEXTO]rios jornalistas e escritores de seu tempo. Não entrou, evidentemente, para a história, embora os textos de Reed tragam de volta a dicotomia entre a IWW e a AFL. Uma comprovação de que pouca coisa mudou no mundo, embora a divisão de blocos hoje seja outra, mudou para ficar tudo como está, afinal, ricos e pobres é um secular conflito. Sorte de Reed que, com seu radicalismo, pôde viver num mundo de efervescência de fato. É o retrato dessas paixões o melhor e mais preciso relato de Eu Vi um Mundo Novo Nascer.

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