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Jornal ilustrado do século 19 é reeditado

Por Agencia Estado
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A rotina não era muito agradável na cidade de São Paulo em 1866: com uma indústria ainda incipiente, os pouco mais de 10 mil habitantes dispunham de recursos limitados e não havia iluminação suficiente, nem sistema de canalização de águas, serviço de esgotos ou calçamento regular. Também faltava à capital um abastecimento estabilizado de água potável. Mesmo assim, São Paulo era sobretudo um burgo de estudantes, os únicos a arrancar a capital da província de seu sono colonial, promovendo uma agitação cultural. Foi esse grupo de acadêmicos que motivou o lançamento do Cabrião, o mais conhecido periódico humorístico e de caricaturas editado em São Paulo, durante o Império. Foram apenas 51 edições, lançadas aos domingos, entre 1866 e 67. Um período em que nenhum político ou cidadão deixava de consultar suas páginas, em busca de uma análise crítica e irônica da atualidade brasileira. Abolicionista, republicano e anticlerical, o Cabrião investia contra os principais atos do imperador Pedro II, especialmente a participação brasileira na Guerra do Paraguai - em 51 números, o conflito foi tema de 55 citações. À frente do projeto, o cartunista Ângelo Agostini (para muitos, o mais importante do Brasil no século 19) e seus desenhos adaptados à litografia, além dos jornalistas Manoel dos Reis e Américo de Campos que, em 1875 e ao lado de Francisco Rangel Pestana, participou da fundação do jornal A Província de São Paulo, que com o advento da República passou a se chamar O Estado de S.Paulo. "Eles retrataram não apenas um partido, mas uma sociedade num momento crucial, como foi o da segunda fase da guerra contra o Paraguai e da constatação de que o regime imperial, particularmente pelos reflexos lançados à província, facilitava a chegada da República. Tudo se chocava, da moda à fidelidade ao regime, do transporte - trem versus cangalha de burro -, divertimentos, convenções, práticas sociais", observa o escritor Hernâni Donato, na apresentação da nova edição fac-similar, lançada agora pela Editora Unesp e a Imprensa Oficial (408 páginas, R$ 60). O trabalho só foi possível, porém, graças à pertinência do advogado Délio Freire dos Santos - profundo conhecedor da história paulistana e pesquisador autodidata, ele descobriu, na biblioteca herdada do pai, uma bem conservada coleção completa do Cabrião. "Foi um grande achado, pois, além da minha, sei da existência de apenas outras três", comenta Santos que, entusiasmado, estudou os exemplares do semanário e, para a nova reedição, escreveu um ensaio sobre o humor presente na política e nos jornais do País, chamado Primórdios da Imprensa Caricata Paulistana: o Cabrião. Trata-se de um curioso inventário das publicações que adotaram a ironia para retratar a sua época, desde os diversos pseudônimos adotados por D. Pedro I até a citação do romance História do Brasil, de Robert Southey, que simplesmente começa no 7º. capítulo e exibe sua dedicatória na página 31. O melhor do ensaio, porém, está concentrado no Cabrião. Apesar da periodicidade efêmera, o semanário, que era liberal, atacava com freqüência o Diário de São Paulo, jornal conservador e católico. A religião, aliás, era um dos alvos preferidos - a atenção dos redatores do Cabrião voltava-se contra frades e jesuítas, principalmente os do recém-fundado Colégio São Luís, de Itu. Em uma das caricaturas, intitulada Caridade Cristã, um padre espanta aos pontapés um grupo de pessoas. A legenda justifica: "perdida a eleição, o santo levita mete os pés nos pobres votantes a pretexto de não poder mais com tanta pobreza". Por conta dessa e de outras investidas, os jornalistas foram processados por atentado à moral e aos bons costumes. "O curioso é que, apesar de não poupar críticas, os jornalistas tinham hábitos religiosos", comenta Délio Santos. "O Américo de Campos, por exemplo, cantava no coro dos padres." O Cabrião também não perdoava seus principais leitores, como os estudantes, criticados pela constante desordem que promoviam na cidade. Apesar de admirado, o semanário não conseguiu resistir mais um ano por causa de problemas econômicos. O preço de 500 réis para cada número avulso transformava o periódico no mais caro publicado em São Paulo, durante o Império. O último número, aliás, de 29 de setembro de 1867, termina com um pedido aos assinantes que estavam com os pagamentos atrasados para acertarem suas contas. "A ameça de não mais ser publicado não sensibilizou os leitores, pois o Cabrião nunca mais voltou a circular", conta Santos.

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