Jorge Luis Borges, em boa tradução

Carlos Nejar e Alfredo Jacques assinam a tradução de Elogio da Sombra; Hermilo Borba Filho responde pela de O Informe de Brodie, dois clássicos do autor

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Por Agencia Estado
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A editora Globo reedita, em volumes separados, dois clássicos borgianos: Elogio da Sombra (1969) e O Informe de Brodie (1970). Tratam-se das mesmas traduções que a Globo havia editado em Jorge Luis Borges - Obras Completas (1999): Carlos Nejar e Alfredo Jacques assinam a de Elogio da Sombra; Hermilo Borba Filho responde pela de O Informe de Brodie. Nem todas as traduções dos quatro volumes das Obras Completas guardam a irretocável qualidade dessas duas, assinadas por escritores de qualidade e importância sabida - e vale lembrar que o poeta gaúcho Carlos Nejar assinou a primeira tradução brasileira de um livro de contos de Borges, Ficções (lançado originalmente em 1944), no início dos anos 70. Elogio da Sombra reúne poemas e textos curtos. O título do livro é o do último poema da coleção, em que Borges fala da proximidade da morte: "Chego a meu centro,/ a minha álgebra e minha chave,/ a meu espelho. Breve saberei quem sou." Nas poucas palavras desses versos finais, há um quase resumo das obsessões borgianas - o lugar de onde tudo pode ser visto, a equação que contém e expande o homem, o fascínio do duplo. Nei Duclós observa, no texto da orelha, que, empurrado para a sombra, aos 70 anos, Borges passa a viver num mundo em que tudo vira linguagem - "inclusive o que não pode ser alcançado pelo poema, apenas sugerido". De certa forma, assim se fez toda a obra borgiana; no prólogo, entretanto, diz o autor: "Este (...) é meu quinto livro de versos. É razoável supor que não será melhor ou pior que os outros. Aos espelhos, labirintos e espadas que já prevê meu resignado leitor acrescentam-se dois temas novos: a velhice e a ética." Talvez sejam temas abordados de forma nova, não temas novos. Integram - no que Jorge Schwartz chama, aqui, de "prosa memorialística", o sistema que inclui "tanto o universo poético quanto os bastidores dos argumentos que arquitetaram a prosa" de Jorge Luis Borges. O Informe de Brodie é aberto com um dos mais memoráveis relatos de Borges - se é possível o juízo de valor em se tratando de tal literatura -, A Intrusa. A história foi atrozmente vilipendiada num filme de Carlos Hugo Christensen que o Canal Brasil insiste em reprisar. É um conto de cinco páginas, a história de dois irmãos: "Escrevo-a agora porque nela se cifra, se não me engano, um breve e trágico reflexo da índole dos antigos suburbanos das margens", Borges narra. Os irmãos protegem-se e à sua casa. Um deles leva para a casa protegida, um dia, uma mulher. Com tempo, dividem-na. Insinua-se o desentendimento. O título revela o desfecho. Não é uma história de sexo ou de amor, mas da "afirmação de uma lealdade que não se detém ante nenhum preço" como diz Beatriz Sarlo, da Universidade de Buenos Aires, na introdução. Ou: "Um aprendizado realizado sobre a base da deslealdade àqueles valores que se consideravam constitutivos de um universo ideológico e moral." Ainda avalia Beatriz Sarlo que Borges, naquele momento em que se aproximava do encerramento da obra, reiterava "sua moral narrativa sustentada na independência da ficção a respeito de seu espaço histórico". Nada é mais exemplar dessa independência do que a frase inicial do primeiro parágrafo de A Intrusa: "Dizem (o que é improvável)..." Existe, no entender de Sarlo e de outros estudiosos, desde o início, na obra de Borges, uma pergunta essencial sobre a possibilidade de escrever literatura na Argentina. "A primeira coisa que Borges faz é rearmar uma linha cultural para esse lugar excêntrico que é seu país", descreve a estudiosa. "Borges reinventa um passado e organiza uma tradição literária argentina em operações que são contemporâneas a sua leitura das literaturas estrangeiras." E ainda, numa conclusão brilhante: "Da periferia (das literaturas estrangeiras), Borges consegue que sua literatura se relacione de maneira não dependente com a literatura ocidental. Faz da margem uma estética." É assim, dessa "periferia", que Borges reescreve , à sua maneira, as Viagens de Gulliver, de Swift, no conto que dá nome ao livro - não como Pierre Mnard reescreveria o Quixote ou como, numa existência eterna, qualquer um, obrigatoriamente, reescreveria o Quixote, mas criticamente, no jogo de ambigüidades e enigmas, ironias e perspectivas instáveis como nunca realizado por qualquer outro autor. Elogio da Sombra e O Informe de Brodie, de Jorge Luis Borges. Editora Globo, 128 páginas, R$ 14 e 118 páginas, R$ 15, respectivamente

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