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Coluna quinzenal do escritor Ignácio de Loyola Brandão com crônicas e memórias

Opinião|Jô jovem, momentos – 1

Jô subiu à mesa de reuniões e executou um sapateado existencialista em homenagem a Sartre

Atualização:

Começo dos anos 60. Duas da tarde, pontual, dona Mercedes, mãe de Jô Soares, pequena e vivaz, descia do taxi diante do jornal Última Hora, então na Avenida da Luz. Entrava direto na redação, eu a esperava. “Aqui está a matéria do menino”, dizia me entregando a coluna de Jô sobre teatro, rebolado e televisão. “Olhe direitinho, ele pediu para o senhor dar uma arranjada.” A arranjada que eu devia dar era pouca, ortografia, troca de letras – ele era um datilógrafo de dois dedos. Eu mudava um e outro titulozinho de nota para dar mais charme. Na verdade era pretensão minha, dois anos mais velho do que ele. A mãe de Jô executou esse ritual por um bom tempo, quando ele não podia ir ao jornal.

Ohumorista JôSoares, São Paulo, SP. 11/9/1972.Foto: Sidney Corralo/Estadão Foto: Sidney Corralo/Estadão

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Mas quando ele ia, enchia a redação não apenas com seu corpo, mas com as gargalhadas, as frases inesperadas. Certo dia, 1960, Sartre e Simone de Beauvoir foram à redação para um bate-papo com líderes sindicais paulistas. Jô conversou com Simone em francês impecável. Tudo terminado, me disse: “Percebeu que Simone não falou uma palavra? Ficou o tempo inteiro cutucando uma espinha no rosto”. Era o observador detalhista, o que explica seus personagens completos, mais de 300, durante uma vida. A Beauvoir estava deprimida com o fim de seu affaire (assim se dizia) com o escritor norte-americano Nelson Algren. Jô me deu a informação, ele lia tabloides americanos e franceses. No final daquela tarde, Jô subiu à mesa de reuniões, imensa e executou um sapateado existencialista em homenagem ao filósofo caolho, como dizíamos. Eram normais seus sapateados. Quando Samuel Wainer estava em São Paulo, se divertia. Falando em dança, poucos sabem que, naquela época, Jô, como seu corpanzil, era o mais desenvolto e ágil dançarino de twist na boate Lancaster, na esquina da Rua Augusta com a Estados Unidos. A banda que tocava ali era a dos Incríveis ou The Clevers, cujo baterista Netinho celebrizou-se ao namorar Rita Pavone, ídolo na Itália. Jô deu a notícia em primeira mão em sua coluna. Quando ele vinha à redação, ficava até 21 horas e saíamos em grupo para o Gigetto, as boates, inferninhos e rebolados. Alguns dentro do seu Gordini, ou Dauphine, não sei dizer qual a diferença, havia os dois, minúsculos, somente o Jô ocupava quase a frente toda. Os outros da turma eram Arley Pereira, especialista em música popular, Domingos Gióia Júnior, que depois virou pastor, David Auerbach e Luiz Thomazzi, cronistas políticos, Dorian Jorge Freire, ombudsman de toda a imprensa paulistana, execrado pela turma do Estadão, jornal rival. Tenham paciência, mas continua. 

* IGNÁCIO DE LOYOLA BRANDÃO É JORNALISTA E ESCRITOR, AUTOR DE 'ZERO' E 'NÃO VERÁS PAÍS NENHUM'

Opinião por Ignácio de Loyola Brandão
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