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Janet Macolm

A partir de caso real, autora discute liberdade de expressão e ética jornalística

Foto do author Luiz Zanin Oricchio
Por Luiz Zanin Oricchio
Atualização:

A primeira frase de O Jornalista e o Assassino, de Janet Malcolm, soou como sentença inapelável nas redações quando o livro foi lançado em 1990: "Qualquer jornalista que não seja demasiado obtuso ou cheio de si para perceber o que está acontecendo sabe que o que ele faz é moralmente indefensável". A condenação não vinha de fora da corporação - Janet Malcolm é escritora e jornalista, com longa folha de serviço na New Yorker, além de ser autora de vários livros, com temas tão variados quanto a vida de Chekhov e os arquivos secretos de Freud. O Jornalista e o Assassino, agora relançado no Brasil, vem enriquecido de dois posfácios, um da própria autora e outro do diretor de redação do jornal Folha de S. Paulo, Otavio Frias Filho. Qual seria o "fazer" jornalístico sobre o qual recai a tão definitiva sentença? Simplesmente a prática mais comum da profissão - a entrevista. Janet entende que a relação entre repórter e fonte é sempre assimétrica, e com grande prejuízo para a segunda parte. Tanto jornalista como entrevistado querem alguma coisa um do outro. Um deseja a notícia, uma história em primeira mão que poderá lhe ser de grande valia na carreira. O outro aspira a certa notoriedade, que apenas a divulgação de suas ideias em veículo de grande expressão pode garantir. É um jogo, no qual ambos têm tanto a lucrar como a perder. Mas, no entender de Janet, a fonte é a parte fraca na relação. "Ele (o jornalista) é uma espécie de confidente, que se nutre da vaidade, ignorância ou solidão das pessoas. Tal como a viúva confiante, que acorda um belo dia e descobre que aquele rapaz encantador e todas as suas economias sumiram, o indivíduo que consente em se tornar tema de um escrito não ficcional aprende - quando o artigo ou livro aparece - a própria dura lição." Ou seja, quando o produto da conversa vem a público, é comum a fonte descobrir que a relação mantida com o jornalista era baseada em um engodo. Que este não teve a mínima intenção de divulgar o ponto de vista da fonte. Pelo contrário, sempre teve em mente divulgar a própria impressão. Manteve a relação em termos amistosos apenas enquanto dela necessitava. Para a fonte, seduzida durante as entrevistas, esse comportamento pode parecer o de um traidor. Qualquer jornalista que tenha algum tempo na profissão sabe que não são poucos os desencontros nessa relação muito particular. Muitas vezes, ao verem ideias que julgam distorcidas publicadas, os entrevistados exclamam: "Mas eu não disse isso, alteraram minhas palavras". Por isso, jornalistas experientes fazem questão de gravar entrevistas. Mas essa providência tecnológica apenas atenua o problema, pois ninguém publica nada sob forma literal. Por uma série de questões técnicas, os depoimentos devem ser editados. E a edição sempre poderá ser tachada de tendenciosa. E às vezes é mesmo. O livro de Janet Malcolm não se baseia em abstrações. Trata de um caso real, e bastante doloroso. Um crime terrível, o assassinato de uma mulher grávida e suas duas filhas a golpes de bastão e facas. O principal suspeito, que acabou condenado, era o próprio marido da vítima, o médico Jeffrey MacDonald. Na época (1970) a serviço do exército americano, MacDonald alegou que a casa fora invadida por bandidos e ele próprio saíra ferido. Na verdade, apresentava ferimentos leves e sua tese nunca pôde ser comprovada. No entanto, foi absolvido pelo tribunal militar. Quando aguardava novo julgamento, foi procurado pelo jornalista Joe McGinnis para uma entrevista. MacDonald gostou tanto do repórter que lhe propôs um arranjo: franquearia sua intimidade e mesmo os bastidores da defesa para que McGinnis escrevesse um livro expondo o seu ponto de vista. Dividiriam a renda do livro e isso ajudaria a custear a defesa. Conviveram durante quatro anos em aparente amizade. Quando o livro - Fatal Vision - saiu, em 1983, MacDonald sentiu-se traído. Longe de esposar sua causa, McGinnis o apresentava como psicopata. Condenado à prisão perpétua no segundo julgamento, MacDonald resolveu processar McGinnis pelo livro, sustentando que suas falas foram distorcidas. No primeiro julgamento MacDonald contra McGinnis não houve unanimidade entre os jurados. Antes que o segundo ocorresse, as partes entraram em acordo e McGinnis teve de pagar US$ 325 mil para encerrar a pendência. O caso é explosivo porque levanta dúvidas sobre a liberdade de expressão e sobre a ética jornalística - e de como uma pode contradizer a outra. A acusação de MacDonald baseava-se em que sua boa-fé no jornalista fora iludida. O jornalista o fizera crer que trabalhava numa versão que seria favorável ao acusado. A defesa de McGinnis baseia-se na liberdade de expressão. O autor teria compromisso mais forte com a verdade dos fatos do que com sua fonte. Se manteve o relacionamento usando atitudes ambíguas, foi no interesse da verdade. Ora, acontece que a "verdade", para Janet, não é um termo tão óbvio como se acredita. A verdade, para alguém tão influenciada pela psicanálise, é algo impossível, no limite. Trabalhamos com versões e podemos escavar tão fundo quanto quisermos, sem jamais atingir a verdade de um fato, e mais ainda de fatos controversos como um crime. A própria Janet se debruçou sobre casos semelhantes de conflitos de versões ao se interrogar, por exemplo, sobre os diferentes relatos sobre a cena da morte de Chekhov. O que teria acontecido, de fato? Ninguém sabe. Mais ainda: ela própria havia sido processada no passado por uma situação semelhante à que analisa em O Jornalista e o Assassino. Em Nos Arquivos de Freud, descrição da luta pela posse da correspondência entre Sigmund Freud e seu amigo e colega Wilhelm Fliess, Janet entrevista um dos curadores das cartas, Jeffrey Masson, que, posteriormente, a processa, acusando-a de atribuir a ele declarações infundadas. Desse imbróglio psicanalítico Janet foi absolvida. Janet não evita a questão e a aborda em seu posfácio. Admite que, por mais que se defenda, ficará sempre com a mácula de haver caluniado Masson, mesmo que isso não tenha acontecido. Por outro lado, apesar do processo e da reparação pecuniária, o relato definitivo do caso MacDonald está estabelecido no livro de McGinnis. O desmentido nunca tem a força da denúncia, e, por isso mesmo, ela entende que se deva lidar com tanta delicadeza e rigor com o que dizem os entrevistados. Apesar de vivermos num mundo de versões, temos a obrigação de cuidar para que elas sejam tão próximas quanto possível de uma intangível verdade. Essa observação é particularmente importante em nossa época, em especial quando o jornalismo literário ganha importância nas redações e entre o público. Usar técnicas de romance para escrever uma matéria é uma coisa, e pode ser ótimo; tornar-se ficcionista é algo que um jornalista não pode se permitir. Seu compromisso, por fluido que seja o termo, é com algo chamado realidade. E, mesmo que ela se esconda atrás de inúmeras versões, insuficientes e contraditórias, sua obrigação é procurá-la obsessivamente. Não interessa se o graal existe ou não; é preciso buscá-lo. O Jornalista e o Assassino não se propõe resolver esses impasses éticos. A importância do livro está em levantá-los e colocá-los como espelho diante da comunidade jornalística. Afinal, como diz Janet Malcolm, os mais sensatos sabem que o melhor que podem fazer ainda não é o suficiente. E os outros fingem que não há problema e, se existia, eles já o resolveram.

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