Já As Meninas de Lygia, no palco, perde introspecção

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Por Redação
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Seria preciso usar lupa para localizar uma brecha na cidadela crítica erigida em torno de As Meninas. Publicado pela primeira vez em 1973 o romance de Lygia Fagundes Telles teve, entre outros atrativos de natureza intrinsecamente artística, o ímã da historicidade. Lançando uma rede de aparência frágil - uma narrativa centrada na vida afetiva de três mocinhas - capturava mutações decisivas na política e na cultura do século passado. Escrito e divulgado no período da ditadura militar, o romance examinava a potência ainda virtual do livre-arbítrio, uma vez que sob o autoritarismo de fato e sob autoridade moral vacilante da Igreja e da família germinavam outros códigos de ética. Para as mulheres, sobretudo, normas de conduta até então impensáveis desenhavam-se em horizonte próximo.A história do País tem ainda grande peso na releitura, mas uma virtude literária singular, que a fortuna crítica do livro não deixou escapar, está na subordinação do factual à perspectiva das três protagonistas. Lorena Vaz Leme, delicada, é a primeira voz em solilóquio, uma vez que, tal como sentencia Bernardim Ribeiro no romance inaugural da língua portuguesa "... o que há de ser se dá primeiro sempre na alma".Também essas meninas, vocações e temperamentos exemplares da juventude do seu tempo, pressentem o devir. E essa linguagem da intuição, tateando a experiência, sem que o monólogo interior subtraia ao leitor o significado das circunstâncias, é um feito literário considerável.Contrapeso. No teatro, talvez em razão do vetusto corolário prescrevendo a ação como uma condição essencial do drama, a interioridade das personagens é transformada em ativismo incessante. Adaptado para a cena por Maria Adelaide Amaral, o romance se transforma em um drama de conflitos juvenis típicos da metamorfose da criança em adulto. Os traços mais vívidos das personagens se traduzem por diálogos factuais que o romance efetivamente contém e pela omissão dos mais vívidos discursos na primeira pessoa que o romance também contem não apenas como contrapeso necessário para revelar subjetividades, mas, antes de tudo, para marcar a importância do foro íntimo como um lugar onde ocorrem coisas substanciais.De um modo geral, a adaptação de uma linguagem artística para outra exige seleção, corte e atribuição de pesos diferentes dos signos visuais e sonoros, porque um gesto do ator pode equivaler a uma descrição minuciosa de atos. Todas essas operações, somadas, acabam por configurar outra obra, onde prevalece a interpretação do autor intermediário. Sob a ótica de Maria Adelaide Amaral, a atmosfera, os pressentimentos, a ambiguidade das circunstâncias sofrem uma poda radical. A presentificação da monja voraz e estúpida, por exemplo, dilui até a quase invisibilidade a representação firme (e desesperada) dos discípulos de João XXIII, a cuja atuação o romance presta uma homenagem fúnebre.Aprisionada na alucinação da droga, a personagem de Ana Clara manifesta o ressentimento de classe, mas não há lugar para a beleza vigorosa do seu discurso análogo ao da poesia marginal dos anos 70 com a sua obscenidade provocativa e ânimo insurrecional: "Fiquei sutil como a rataria em noite de lua." Nada de sutilezas, porque em cena sobrevive apenas o clichê da moça pobre, bonita e explorada.Também no espetáculo o desbaste do material reflexivo é o mote determinante. Sob a direção de Yara Novaes, as protagonistas são rápidas, saltitantes, altissonantes e absolutamente incapazes de conceder a si mesmas o repouso necessário para matizar as relações afetivas e rememorar seus motivos e crenças particulares. São, sobretudo, desprovidas de argumentos e isso é o que mais faz falta na concepção de mulheres muito jovens vivendo um momento decisivo - mas não é esse o tratamento que o elenco dá às personagens.Qualquer emoção é exaltada vocalmente, sublinhada por olhares e enfeixada na máscara caricatural da personagem. Lorena é saltitante, Lia tem movimentos retos e bruscos, quase masculinos. Ana Clara cambaleia, estremece e saliva com tamanho exagero que sua autocomiseração nos dispensa de gastar nossa compaixão. Todas, enfim, tornam-se personagens de melodrama uma vez que são despojadas da riqueza ambígua e poéticas do discurso interior. Tornam-se, sob a ótica deste espetáculo, moças boazinhas que o destino (talvez sob o disfarce da história ou da situação de classe) maltrata.As Meninas (Lygia)Teatro Eva Herz. Av. Paulista, 2.073, 3170-4059. Sáb., 18 h; dom., 17 h. R$ 50. Até 25/4

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