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J. Simões é redescoberto e reeditado

Por Agencia Estado
Atualização:

Para seu biógrafo, Carlos Reverbel, autor de Um Capitão da Guarda Nacional - Vida e Obra de J. Simões Lopes Neto, o autor gaúcho foi "um homem derrotado" e "um escritor vitorioso". Quando ele morreu, em 1916, aos 51 anos, apenas três de seus livros haviam sido publicados: Cancioneiro Guasca (1910), Contos Gauchescos (1912) e Lendas do Sul (1913). Casos do Romualdo e o primeiro volume de Terra Gaúcha surgiriam só muito tempo após a sua morte, nos anos 50. A revalorização desse escritor fundamental é um fenômeno mais recente. Passa pelos estudos críticos de Flávio Loureiro Chaves, Lígia Chiappini e do próprio Reverbel. Transformando o regional em universal, a obra de Simões tem como pedra de toque o personagem Blau Nunes, que muitos críticos consideram o avô, sem filho, do Riobaldo de João Guimarães Rosa. Esses Joões são autores de obras notáveis. A de Guimarães Rosa já se credenciou à admiração do Brasil e do mundo. Maior que o amado Jorge, Guimarães esculpiu um universo - chamado de rosiano - que não repousa só na singularidade de um falar poético, alheio ao ouvido urbano e sempre reinventado, mas também na vontade de dar sentido filosófico a tudo aquilo que, num primeiro momento, parece apenas observação de tipos, costumes e geografias do interior mineiro. Há que (re)descobrir agora J. (de João) Simões Lopes Neto. Talvez não seja tão imenso quanto Rosa, mas Blau, o herói de Simões, desbravou a trilha que Riobaldo percorreu para se eternizar como uma das figuras emblemáticas das letras nacionais. Pode contribuir para isso a nova edição de Contos Gauchescos e Lendas do Sul, num único volume da Globo, que inclui o glossário de Aurélio Buarque de Holanda. Na orelha, e desta vez é preciso prestar atenção na orelha, Nei Duclós, o poeta de Outubro ("Lento e bruto eu mudo/Sei que vem outubro"), escreve que o gaúcho brotou da guerra e encontrou sua melhor morada na literatura de J. Simões Lopes Neto, que define como "refúgio de refinado acabamento". Vale falar um pouco sobre o homem, até como forma de iluminar o artista. João Simões Lopes Neto nasceu em Pelotas, em 1865. Era uma cidade avançada em sua época, enriquecida pela exploração do charque e por um primórdio de industrialização. O menino João, descendente do visconde da Graça, nasceu numa estância, mas não poderia ser definido como um homem do campo. Estudou no Rio e, quando voltou para casa, dilapidou a fortuna familiar em empreendimentos desastrosos, que o levaram a morrer pobre. Passou pelo jornalismo sem fazer um grande nome. A reputação lhe veio após a morte. Esse homem urbano e polido não tinha nada a ver com a imagem que se faz, tradicionalmente, do gaúcho campeiro, ou pampeano, para usar-se uma terminologia do Sul. Talvez por influência das lembranças de infância, seu primeiro encontro com a tradição cultural deu-se por meio do Cancioneiro Guasca, que suscita reservas de alguns historiadores, mas tem o mérito de colocar João na vertente que o fará famoso. O Cancioneiro é uma tentativa de transcrever e codificar o acervo poético de origem popular no Rio Grande. Mesmo fazendo ressalvas quanto ao critério seletivo de Simões Lopes Neto, o folclorista Augusto Meyer destaca seu esforço em reunir, com método, o material que andava esparso, salvando muita coisa da tradição oral gaúcha, ameaçada de esquecimento. Guia de viagem - O resgate do Cancioneiro preparou o autor para a aventura dos Contos Gauchescos e das Lendas do Sul. Simões Lopes Netos abre os contos gauchescos com a apresentação de Blau Nunes, que será o avô de Riobaldo. Define o vaqueano como seu guia na longa viagem pelo Rio Grande do Sul e fornece suas características físicas: chama-o de "genuíno tipo crioulo rio-grandense", "guasca sadio, a um tempo leal e ingênuo, impulsivo na alegria e na temeridade, precavido, perspicaz, sóbrio e infatigável, dotado de uma memória de rara nitidez brilhando através de imaginosa e encantadora loquacidade servida e floreada pelo vivo e pitoresco dialeto gauchesco". Termina a apresentação com um "saudoso Blau!" E pede ao leitor: "Patrício, escuta-o." A partir daí, Flávio Loureiro Chaves reconhece nos Contos Gauchescos e nas Lendas do Sul "uma característica documentária que vai da linguagem dialetal até a fixação de um código ético específico, passando pelo registro histórico e a fotografia duma tipologia social". Tudo isso contribui para a definição do texto dentro da corrente do regionalismo, que era a tendência predominante em boa parte da literatura brasileira do mesmo período, podendo citar-se a vertente do naturalismo aberta por Euclides da Cunha com Os Sertões. Essa preocupação com a documentação e a interpretação da realidade circundante é uma das características da literatura de João Simões Lopes Neto. Mas o autor lhe acrescentou uma ideologia que, desde o romantismo, com José de Alencar e seu O Gaúcho, envolvera o habitante dos pampas numa aura heróica. É na convergência de todos esses elementos culturais que se delineia a figura de Blau Nunes, o vaqueano que Antônio Candido define como o Marlowe gaúcho, observando que ele "se situa dentro da matéria narrada e não raro do próprio enredo", levando à dissolução, "do homem culto no narrador rústico". Ampliando o discurso crítico de Antônio Cândido, Flávio Loureiro Chaves afirma que a verossimilhança dos contos (gauchescos e do Sul) está na inteira dependência desse recurso narrativo. O relato do vaqueano integra tudo ao universo da experiência individual e une o conjunto de episódios "numa espécie de fio subterrâneo". Pode-se ler as aventuras de Blau como episódios autônomos ou como um romance psicológico. O homem que recorda ingressa numa solitária epopéia em busca da própria identidade. Loureiro Chaves afirma que, até surgir O Continente, de Érico Veríssimo, primeiro volume de O Tempo e o Vento, em 1949, Blau se constitui no único personagem fornecido pela ficção sul rio-grandense ao contexto maior da literatura brasileira. O autor transforma elementos localistas em metáforas em ´causos´ como Trezentas Onças (dos Contos Gauchescos) e A Salamanca do Jarau (de Lendas do Sul). Esse último já existia, trazido ao Rio Grande pela tradição ibérica. Simões Lopes Neto criou um texto inteiramente novo, não só pela via da linguagem literária e de sua inserção nos pampas, mas por haver transformado Blau no protagonista da história do homem arrastado à destruição pela mulher metamorfoseada em animal demoníaco. (Re)ler João Simões Lopes Neto é (re)descobrir, na raiz, a força da literatura gaúcha. Contos Gauchescos e Lendas do Sul, de J. Simões Lopes Neto. Glossário de Aurélio Buarque de Holanda. Editora Globo, 368 páginas, R$ 25.

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