J. K. Rowling abandona a bruxaria e abraça os mistérios

Sob pseudônimo, criadora de Harry Potter revigora o gênero e se aproxima de nomes como Conan Doyle e Agatha Christie

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Por Redação
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Em abril de 2013, foi publicado na Inglaterra O Chamado do Cuco, romance policial de Robert Galbraith. O livro vendeu alguns milhares de exemplares e obteve elogios da crítica. Três meses depois, descobriu-se que Robert Galbraith era, na verdade, J. K. Rowling, criadora da série Harry Potter, o que foi suficiente para emplacar o primeiro lugar na lista de mais vendidos. Aos jornais, Rowling contou que publicar sob pseudônimo foi uma “experiência libertadora”.

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Editado no Brasil pela Rocco, casa do famoso bruxo e que teve a sorte de comprar os direitos da obra do autor desconhecido sem saber quem era o nome por trás dele, o livro apresenta a misteriosa morte da supermodelo Lula Landry, que caiu da varanda de seu prédio. Como estava sozinha, a polícia conclui pelo suicídio. Meses após o enterro, John Bristow, irmão de Lula, contrata Cormoran Strike para investigar o incidente, certo de que alguém a matou. O detetive Strike, um veterano de guerra, se lança, então, no mundo de celebridades fúteis e de famílias problemáticas.

O romance se insere na escola britânica de literatura policial, uma das mais tradicionais do mundo, que conta com autores como Sir Arthur Conan Doyle e Agatha Christie. O subgênero whodunnit (quem matou?), com seu número limitado de suspeitos geralmente investigado por um detetive particular, é característica marcante desta escola que se desgastou nas últimas décadas até cair no mais enervante convencionalismo. As tramas ágeis e violentas do scandi crime e dos thrillers norte-americanos ganharam a preferência dos leitores, e o whodunnit perdeu força – atualmente, suas maiores representantes são Ruth Rendell e P. D. James, ambas com mais de 90 anos.

Com O Chamado do Cuco, J. K. Rowling se mostra, antes de tudo, leitora fiel desses grandes clássicos. O romance flerta com princípios básicos do gênero ao mesmo tempo em que traz novos elementos, como discussões sobre privacidade e o poder da fama. A Londres vitoriana é substituída por uma Londres pulsante, moderna, com suas celebridades perseguidas por paparazzi, casas de hip-hop e vídeos filmados pelo celular que vão parar no YouTube.

O detetive Cormoran Strike é um personagem humano. Nada impecável como um Sherlock Holmes ou um Hercule Poirot, vive entalado em dívidas, está em crise no casamento e dorme numa cama improvisada nos fundos do escritório. Tem um forte senso de justiça e busca implacavelmente descobrir a verdade. Como usa uma perna mecânica, é um detetive mais cerebral que físico – ao longo das páginas, são raras as cenas de ação e abundam os interrogatórios, o que talvez cause estranheza aos acostumados às aventuras agitadas de Harry Potter.

Auxiliando Strike como um diligente Watson, Robin Ellacott chega ao escritório para um trabalho temporário e acaba se tornando parceira do detetive. Ao contrário do assistente clássico, Robin é uma mulher ativa, sagaz, que realiza missões e efetivamente ajuda Strike na solução do mistério. Ainda que demore a engrenar, a relação dos dois apresenta nuances interessantes e, sem dúvida, será explorada ao longo dos livros da série – sim, haverá uma.

Mas nem só de uma história instigante é feita a boa literatura policial. Valendo-se da trama de mistério, J. K. Rowling nos faz refletir sobre o tempo em que vivemos, no qual a informação vale ouro e os tabloides sobrevivem da desgraça alheia. A vida e a morte de Lula Landry têm clara aproximação com a história de Amy Winehouse: ambas são celebridades inglesas com problemas com drogas, amadas e odiadas pelo público, com sua descida moral escancarada pela imprensa.

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A obra ainda homenageia os mistérios de “quarto fechado”, recurso popular nos anos 1960 e 1970, no qual o crime ocorria num ambiente trancado, com a vítima sozinha. Como é possível que Lula Landry tenha sido jogada pela varanda se mais ninguém estava com ela no apartamento ou foi visto saindo do prédio? Mesmo o leitor mais experiente mudará seus palpites a cada capítulo – é o jogo proposto.

Com final surpreendente, O Chamado do Cuco chega como um bom presságio ao futuro do gênero. Com a força do nome J. K. Rowling, não será e espantar se o livro retomar o gosto de leitores pelo gênero e atingir um público jovem. Rowling, a rainha dos bruxos, é a mais nova dama inglesa da literatura policial.

O CHAMADO DO CUCOAutor: Robert GalbraithTrad.: Ryta VinagreEditora: Rocco (448 págs., 39,50 – brochura, R$ 49,50 – capa dura)

RAPHAEL MONTES É AUTOR DO ROMANCE POLICIAL SUICIDAS (BENVIRÁ)

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