Ivan Lessa: Um debate impagável

Colunista recomenda um jeito diferente de assistir a um debate política pela TV.

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Por Ivan Lessa
Atualização:

Foi na quinta-feira da semana passada. Nós aqui noticiamos direitinho. Os três principais candidatos que disputam o posto de próximo primeiro-ministro britânico realizaram o primeiro debate televisionado do país. Serão três, os debates. Cada um de 90 minutos, um moderador e vale pergunta do distinto auditório presente. Não vale é aplaudir. As eleições gerais, ou pleito, como também se diz, deverão se realizar na quinta-feira, 6 de maio. Coisas dos britânicos. Tem sempre que ser numa quinta-feira. E não é feriado. As pessoas cumprem seu dever cívico ou antes de irem para o trabalho, na hora do almoço, ou depois de voltarem para casa. Os mais velhos, bem mais velhos, não precisam comparecer em hora alguma. A bem da verdade, ninguém é obrigado a comparecer. O voto não é obrigatório. Mas volto à quinta-feira, 15 de maio, 8 e meia da noite. Os dois favoritos para saírem vencedores (não dá para dizer saírem coroados; coroa é só com a rainha Elizabeth), Gordon Brown, do partido Trabalhista, e David Cameron, do partido Conservador, concentravam a maior atenção dos espectadores. No entanto, no dia seguinte, segundo as principais pesquisas de opinião, e a imprensa, quem vencera mesmo fora Nick Clegg, líder dos liberais-democratas. Nick Clegg é tido como o azarão da disputa eleitoral. É preciso ter cuidado com certas certezas. Principalmente quando lidando com os britânicos. Eles, ao menos em certos setores, mantém acesa a tocha da tradição de excentricidade, ou, para não exagerar, de na hora agá fazer o contrário do esperado. Basta lembrar as eleições de 1945, quando todo mundo esperava que Winston Churchill, o homem que, para muitos, havia sido o principal responsável pela vitória da Grã-Bretanha na Segunda Grande Guerra, acabou sofrendo a mais espetacular das derrotas nas urnas. Tudo isso, no entanto, é encheção de linguiça de minha parte. Arte tosca na qual sou mestre. Também tento ser sincero, jogar limpo. Confesso que fiquei assistindo, na hora marcada para o debate transmitido, claro, ao vivo, uma dessas séries americanas onde há sempre um detetive tentando pegar um serial killer. O que é só para disfarçar. Todo mundo está interessado mesmo no - atenção, vou traduzir na marra! - "assassino sequencial". Na hora dos comerciais, que são mais ou menos 4 interrupções de uns 3 minutos por hora, eu zapeava com o controle remoto para o anunciadíssimo debate. Com um pequeno senão. Eu deixava sem som. Isso porque me lembrei de uma narrativa do dr. Oliver Sacks, neurologista britânico que vocês conhecem muito bem. É aquele que escreveu a história, verdadeira, do Rain Man, premiado filme, acho, com o Dustin Hoffman no papel de um autista explorado pelo irmão, Tom Cruise, nos cassinos de Las Vegas. Ora, pois, pois. No mesmo livro em que o dr. Sacks conta o caso, O homem que confundiu sua mulher com um chapéu, grande título, em todos os sentidos, mais adiante ele expõe outra narrativa fascinante. Num asilo para autistas, desses ensimesmados, que mal falam ou reagem a qualquer estímulo externo, por um acaso ligaram a televisão da sala de recreios num debate presidencial. Reagan e Jimmy Carter, acho, mas não juro. Por um desses azares, ou sorte, o som não funcionava, e a seleta plateia começou a assistir a uma complicada discussão sem ouvir uma só palavra. Os autistas tinham apenas, como referencial político, as expressões faciais e, claro, corporais dos candidatos. Para enorme surpresa do dr. Sacks, e do resto do pessoal do asilo, todos presumivelmente dotados de plena saúde mental, a turma autista rolava no chão de tanto rir. Como se estivessem assistindo aos melhores filmes mudos do Carlitos ou do Buster Keaton. Não vem ao caso presente, mas o eminente doutor, a partir desse dado vital, tirava suas conclusões, que, bestalhão que sou, já me esqueci quais eram. Pois algo semelhante se deu comigo no dia do debate britânico. E olha que eu me considero mentalmente razoavelmente são. Ri, não de cair no chão, ou às bandeiras despregadas, mas passei perto, muito perto. Vou, finalmente, à venda de meu peixe: tentem vocês aí seguir o exemplo dado pelo ilustre neurologista. Assistam debates e promoções políticas sem o som. Leiam os comentaristas políticos sem o som (tentem que dá). Depois me digam. Ou não digam. Façam apenas expressões corporais. Estarei aqui achando a maior graça. BBC Brasil - Todos os direitos reservados. É proibido todo tipo de reprodução sem autorização por escrito da BBC.

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