PUBLICIDADE

Ivan Lessa: Perdão, escravos

Colunista comenta pedidos de desculpas pelo tráfico negreiro e pela escravidão, feitos em vários países.

Por Ivan Lessa
Atualização:

A Nigéria, esse baluarte do mundo livre, mediante seu Congresso de Direitos Civis, dirigiu uma ponderada missiva a diversos líderes tribais, tanto dela mesmo quanto de outros países africanos, conclamando-os a seguirem o exemplo dado pelos Estados Unidos, cujo Congresso votou agora mesmo, em 2009, a favor das desculpas oficiais pelo tráfico negreiro, e também pelo Reino Unido, quando Tony Blair, em 2006, referiu-se ao tráfico como "um crime contra a humanidade". A carta mais do que sugere um pedido de perdão (ou desculpas; em inglês está sorry) em nome de seus ancestrais que colaboraram com os traficantes negreiros europeus e árabes dos séculos 15 a 19. Na carta em questão, o Congresso diz o seguinte: "Não podemos continuar a culpar os homens brancos, dado que os africanos, principalmente seus líderes, não estão isentos de idêntica responsabilidade." A carta toca em assunto por demais melindroso. O Ocidente, em parte, já se desculpou. O presidente Lula, em 2007, em viagem ao Senegal, pediu o devido perdão a todo o chamado (mas não chamemo-lo) Continente Negro. Portugal? Neca. É possível que em alguma parte da Lusitânia haja algum museu dedicado - e com os brandos modos de nossos avozinhos - ao tráfico negreiro, já que os portugueses não perdem uma oportunidade de inaugurar um museu. Perto de um apartamento meu, em Cascais, próximo a Lisboa, há um Museu do Mar, que nunca me ocorreu percorrer, uma vez que já conheço, com alguma intimidade, um bocado de mar, principalmente aquele chegado ao Atlântico. Mas desviei-me do assunto como um navio negreiro se desviava das patrulhas britânicas de alguns séculos atrás. O Congresso de Direitos Civis nigeriano acrescenta, na citada carta, que os ancestrais dos líderes tribais ajudaram nas invasões e sequestros de um sem número de comunidades pacíficas e indefesas apreendendo seus habitantes negros para negociá-los com os traficantes negreiros. E finaliza o documento dizendo que esta seria a única maneira de colocar um selo final na triste história do mercado. Sabemos, graças àqueles povos que já pediram o devido perdão, que, em cerca de 400 anos, entre 1450 e 1850, mais ou menos, perto de 28 milhões de africanos foram enviados para as Américas. Calcula-se ainda que, na travessia feita pelos navios negreiros, mais de um milhão morreram, devido às miseráveis condições nas embarcações e, mais tarde, no esmagamento brutal de qualquer tipo de resistência. Foi um comércio triste e lucrativo de homens, mulheres e crianças entre a África e as Américas. Chegou-se mesmo a justificar a escravidão por razões morais e religiosas e baseada na crença da suposta superioridade racial e cultural dos europeus. No Brasil - e friso que já nos desculpamos oficialmente - o tráfico de escravos teve um grande crescimento com a expansão da produção de açúcar, a partir de 1560, e com a descoberta de ouro, 300 anos mais tarde. Nossos principais portos de desembarque eram a Bahia, Rio de Janeiro e Pernambuco, de onde seguiam para outras cidades. Tudo isso a propósito de que, em minha pobre opinião, há um certo excesso nos, e me desculpo por chamá-los assim, tráficos de desculpas. Besteira e falta de caráter bombardear e depois ser polido e dizer "sorry, afegães, sorry iraquianos". Sexta-feira, dia 20, foi o Dia da Consciência Negra no Brasil e feriado em 700 municípios. Editoriais compenetrados e bem comportados sugeriram que o que se deveria fazer era refletir. Outra bobagem. No feriadão, o melhor a fazer é ir a praia ou visitar os parentes. Refletir é trabalho para o resto do ano. Pedir desculpas, feito sugere a Nigéria, convenhamos, também é um pouco tarde demais. Além do fato de que não dá camisa a ninguém, se me permitem uma expressão mais do que inadequada. Basta, tão simplesmente, dar uma relembrada, via livros, (estes existindo, claro), nos horrores passados prometendo, e cumprindo, não fazer nunca mais - nada de parecido com ninguém. Já bastaria. BBC Brasil - Todos os direitos reservados. É proibido todo tipo de reprodução sem autorização por escrito da BBC.

Tudo Sobre
Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.