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Ivan Lessa: Ouvindo a biblioteca

Colunista comenta o acervo online de 28 mil gravações da British Library.

Por Ivan Lessa
Atualização:

Semana passada eu andei falando de disco. O 50º aniversário do lançamento na praça do álbum Kind of Blue, de Miles Davis com seu glorioso sexteto. Começo a semana com um 7 de Setembro na alma e na mente, mais afinado, espero, que uma versão da cantora Vanusa, e, embora distante espiritualmente de minha torrefação natal, faço-me a patriótica pergunta: de quando datará sua primeira gravação? Onde posso ouvi-la, nestes dias em que tudo pode ser baixado na internet? Viro e remexo no computador e, de positivo mesmo, nada. Nós precisamos, nessa expectativa da dinheirama que vai rolar com o pré-sal, ir capitalizando tudo e disponibilizando virtual e virtuosamente para um povo heróico e deslumbrante tudo que temos de retumbante, de brados célebres a chorinhos esquecidos. Como disse, mais ou menos, o poeta Octavio Paz: "O que passou não se foi, segue sendo". Vamos seguir o exemplo ainda recente da British Library. A renomada instituição acaba de colocar na net, para ser baixado grátis por quem quiser, todo seu vastíssimo acervo de música mundial e tradicional também, além de muitas curiosidades. São cerca de 28 mil gravações, totalizando cerca de 2 mil horas de um acervo ímpar: tem gente cantando, soprando, assobiando, batendo em diversos instrumentos inusitados, fazendo, em suma, o que a humanidade faz, sóbria ou de porre. Uma barulheira dos diabos, se quiserem. Mas é coisa própria dos homens, merecendo pois seu devido registro. Anotem, passem por lá: http://sounds.bl.uk/ A curadora do departamento de música mundial e tradicional, Janet Topp Fargion, explicou tratar-se de um projeto dos mais emocionantes. Acrescentando que uma das dificuldades no trabalho de arquivismo é o de que as pessoas doam o que têm e podem para as bibliotecas ou institutos e, depois, nunca mais ouvem falar das doações. Nunca mais ouvem, para ser mais explícito. O patrimônio foi em sua grande maioria obtido graças ao que muita gente achou em velhos baús, no fundo de uma gaveta, num sótão ou num porão. Tudo material jamais lançado, comercialmente ou de qualquer outra forma. Coisas em estado bruto. Vai ver até a já célebre interpretação do Hino Nacional, de nossa boa Vanusa, já lá se encontra, em brutíssimo estado. A coisa vai de canções folclóricas ao cancioneiro militar. O interessante é quem interpreta o quê. A curadora da biblioteca sublinha as versões interpretativas de torcedores de futebol com seu repertório dedicado a essa ou aquela outra equipe ou mineiros em passeata de greve. Lá estão também os slogans cantarolados, ou melhor, gritados em desfiles anti isso ou pró aquilo. São cem anos de história aural começando com o antropólogo britânico Alfred Cort Haddon registrando em cilindros de cera os cânticos de aborígenes australianos em 1898. O excêntrico não poderia deixar de lá estar, uma vez que o nome da Library é "British". Portanto, lá está, entre as milhares de gravações, uma de cupim, ou seu coletivo, cupinzama, devorando a moldura de uma janela às - como são precisos os britânicos - 4h da madrugada, ouvindo-se ao fundo grilos a grilarem. Agora quem preferir Vanusa no YouTube, tudo bem. Comigo e com eles. BBC Brasil - Todos os direitos reservados. É proibido todo tipo de reprodução sem autorização por escrito da BBC.

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