Ivan Lessa: O cinema aberto

Sugiro que levem o cinema nacional às favelas cariocas e que a plateia participe como figurante de uma instalção artístico-social.

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Por Ivan Lessa
Atualização:

Outro dia mesmo, eu andei falando aqui dessa zorra que está na moda por aqui para uns pouco londrinos novidadeiros. Recapitulo para os que estão chegando atrasados, no escuro e sem lanterninha. Trata-se do The Secret Cinema, ou, bem traduzindo, O Cinema Secreto. Simples. E complicado. A pessoa, de bom gosto e alguns recursos, entra num site, ou sítio, com esse nome, se registra e fica aguardando o convite para o próximo espetáculo. Um filme e sua exibição. Mas exibição é pouco. Trata-se de uma espécie de "cinema instalação", como me deu na telha chamar. O sócio recebe o aviso do dia, hora e local do acontecimento (lembram-se dos happenings? Lembra um pouco). Você paga uns bons cobres para ver um bom filme em condições especiais. Muito especiais. Falei do último a ser levado. Um Estranho no Ninho, Jack Nicholson, malucos. Vocês manjam. Mas não como o Secret Cinema leva. Em local escolhido a dedo e com coisa à beça antes do início do espetáculo. E não me refiro a papo na sala de espera e a venda de balas e sorvetes. Pura e sofisticada super-produção. O filme em questão era, para traduzir a expressão deles, apenas a cereja no topo do bolo. Antes de passarem, grupos vagueavam maquiados de loucos andando pra cima e pra baixo, sangue na parede, cantando músicas esquizofrênicas. O diabo, enfim. Nunca fui. Pretendo ir. O que eu queria, neste ano novo, é que, já que estamos inovando, com butiques, hotéis e cinemas em 3D nas favelas, como solução social, para um país e uma cidade, o Rio, com uma das mais desiguais sociedades na face da Terra (segundo li aqui mesmo, no site em inglês, na BBC), e também com presidente ou presidenta, como ela se chama, nova e governador em segundo mandato, o que eu queria, repito é, de longe, dar uma sugestão criativa. Já que o Complexo do Alemão leva filme do Jeff Bridges digitalizado e em 3D, por que não, patriotas que somos, prestigiarmos o produto nacional? De comprovada qualidade, conforme vinha antes nas telas? Dou um exemplo à guisa de sugestão. Uma cópia nova do imortal Deus e o Diabo na Terra do Sol, do grande Glauber Rocha. Não precisa ser em 3D. Cópia nova e cercada de curtição tipo arte de instalação, feito como estão fazendo por estas bandas. Mas tem que ser em favela. E favela daquelas perigosas, se é que já não foi saneado o que os pessimistas e mal humorados chamam de "problema" ou "pobrema". As pessoas se inscrevem, online, naturalmente, pagam uma quantia razoável, já que somos a terra do Eike Batista, o oitavo homem mais rico do mundo, daí ficam aguardando o dia da exibição. Ou mostra. Vernissage. Como queiram. A coisa se passaria num vasto galpão abandonado pelos traficantes presos ou ainda recentemente recuperados para a sociedade. Teríamos que dar asas à imaginação e inventar uma miséria sertaneja, já que esta não existe mais, conforme sabemos. Soltar, no local, pelos ares urubus e abutres grasnando para valer. Tá bom, vá lá: periquitos e araras fantasiados. Povoar o recinto com pobres (também se ainda os houver) uivando de angústia existencial, mas parrudos e de feições nobres. Todos vestidos de nordestinos ou cangaceiros. A gesticular e falar desordenadamente coisas sem nexo em puro carioquês dos anos 60. Ali adiante, um fanático religioso, a cara de Antonio Conselheiro, com um cajado, tentando acertar na cabeça pessoas sem ares de autoridade armada. Em cantos estratégicos, homens e mulheres de aspecto letrado e cinematográfico discursando sobre crises, explicando porquê a miséria leva muita gente a extremos (mesmo extremos de otimismo ou cegueira). Um casal portando cartazes se dizendo chamar Manuel e Rosa peitando paranaenses fantasiados de coronéis nordestinos com chapéus feitos de jornal velho. Quatro cachorros, treinados para fazerem o papel de gado, ladrando de fazer dó. Um beato destituído de rouge e batom murmura inanidades cifradas para quatro rapazes surfistas que se fazem passar por cangaceiros. Um aspirante a teleator grita em falsete: "Socorro, socorro! O massacre de Canudos vem aí!" Sentimentos complexos em ângulos irregulares focalizam o cangaceiro Corisco, que, loiramente, e desoculado, tenta imitar, entre trejeitos e esgares, Lampião. Um paulistão forte e barbudo, armado de pizza e garapa, avisa entre ponchos, do alto de um cavalo magro, que "um dia o mar vai se tornar sertão e o sertão vai se tornar mar". Nos muros, grafites incompreensíveis se esgoelam, berram, uivam. Incessante, de um alto-falante, em câmera de eco, uma voz fremente proclama, "Eu sou um gênio! Eu sou um gênio!". Depois, no ar condicionado, em confortáveis poltronas feitas de couro de bode e cabra, passam o filme debaixo de uma saraivada de palmas a cada sequência. "Genial! Genial", ululam todos, quase que em uníssono. BBC Brasil - Todos os direitos reservados. É proibido todo tipo de reprodução sem autorização por escrito da BBC.

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