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Ivan Lessa: O Caetano

Colunista comenta o motorista português que, há vários anos, o pega no aeroporto nas férias em Cascais.

Por Ivan Lessa
Atualização:

Quer dizer, Caetano para nós, da família. Nenhuma Velosidade nisso. Ele, na verdade, é "seu" Caetano, quando com ele lidamos, ao natural e ao telefone. Profissão: taxista. Nacionalidade: portuguesa. Residência: Cascais, Lisboa. Nunca "senhor" Caetano. Afinal não estamos nem em legenda de filme ou telenovela brasileira. Quando vamos - monotonamente - para as férias de julho e parte de agosto em Cascais ligamos antes marcando para ele nos pegar no aeroporto da Portela em Lisboa e nos levar até Cascais, onde tenho uma - chamemo-la assim, por pretensão - residência de verão que alugo nos outros meses do ano para pagar condomínio, serviços e todas essas outras coisas muito mais baratas que em Londres. Lá está, nos esperando, sempre com um vasto sorriso estampado no rosto alegre (o lugar-comum cabe como, ora, uma luva), cuida da mala, leva-nos pelas entranhas da Portela até seu possante carro e, por uns 20 minutos, vamos no bem-bom de um ar-condicionado ouvindo suas novidades. "Seu" Caetano é todo novidades. Nenhuma delas fascinante. A não ser que se julgue que ter um filho "toxicodependente", conforme lá se diz, torcer pelo Benfica, e reclamar da companheira de quase 50 anos seja fascinante. Minto um pouco. De vez em quando, em seu falar incessante, ele nos dá algumas deixas de seu passado como militar em Moçambique nos "bons tempos do Salazarismo." Acabei de entregar "seu" Caetano. Ele nunca abriu o jogo, mas que, num suspiro ou outro, numa de minhas famosas desconstruções, notei seu passado que, admita-se, era natural, muito natural. "Seu" Caetano me relaxa após o voo que, para mim, é sempre neurotizante, embora de apenas umas duas horas e pouco. Ouço-o falar e é como se eu tivesse mergulhado de cabeça numa piscina (pronuncie à portuguesa: "pixina") cheia até a borda das melhores e mais reluzentes páginas de Eça de Queiroz. Seu "Caetano" tem repertório variado. Fala-me de outros clientes, sem nunca ultrapassar os limites da privacidade, conta-me casos de reis e rainhas e outros nobres portugueses, dá-me a origem dos nomes de cidades, aldeias, freguesias e quintas, para não falar das recomendações para restaurantes à altura (quer dizer: baixinhos) de meu bolso. Eu ouço. De vez em quando rio um pouco, entremeio a peroração com um inteligente e monossilábico repertório baseado em "é, mesmo?", "o quê, seu?", "puxa!" e outras tiradas do mesmo gabarito. Em casa, no condomínio, ajuda-me com as malas, que é mais moço e mais forte que eu, como o resto da humanidade, e, com a maior delicadeza, responde ao meu "Quanto devo ao senhor, "seu" Caetano?", com uns euros fracos de voz, por educação, e fracos quando comparados à fortuna que estão cobrando em Londres. Passam-se assim quatro semanas sem a prosa de "seu" Caetano. Dois ou três dias antes de embarcarmos de volta para o Reino Unido, marcamos outra viagem. Cinco minutos antes da hora marcada lá está ele pontualmente, rente como um rico pão saloio. E taca para o aeroporto ouvindo mais algumas de suas aventuras. Moçambique e o Benfica, uma freguesa sueca, ligeira altercação com os vizinhos, os desgostos que lhe causa o filho. Deu-me um livro este ano, que deve ser, creio, o 25º. que apelamos para seus méritos de guia, narrador e motorista. Repito: deu-me um livro. Sobre os descobrimentos portugueses. Dedicatória sóbria e amiga. Não dei nada, nem exagerei na gorjeta. Poderia pegar mal. Mas tenho seu endereço e, por remessa expressa, seguirá ainda esta semana a mais recente arte que andei cometendo (creio que é assim que se diz) em livro. Ou então vou procurar algo sobre os descobrimentos brasileiros (não vale a tanga ou o "fio dental"), que alguém deve ter inventado e publicado um dia. Ano que vem, no caso de haver um ano que vem, irei com outro livro debaixo do braço. Os mesmos descobrimentos portugueses, só que vistos pelos descobertos. Só para aborrecê-lo um pouco. Afinal, essa de Moçambique me chateia um pouco. Mas, além da ironia, com o livro irá também, como uma inscrição, uma boa dose de bem querença, que essas coisas surgem onde e quando menos se espera. BBC Brasil - Todos os direitos reservados. É proibido todo tipo de reprodução sem autorização por escrito da BBC.

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