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Ivan Lessa: Nas águas da tortura

Colunista comenta o impacto de revelações sobre a prática de 'caldo' em interrogatórios na chamada 'guerra ao terror'.

Por Ivan Lessa
Atualização:

Gozado. Os brasileiros gostamos de tortura. No outro sentido. Não de torturar ou ser torturado. Gostamos de ler a respeito. De ver, ao menos um pouco, entre os dedos da mão espalmada sobre o rosto, quando mostram num enlatado mais violento. E como há enlatados "mais" violentos! O mundo é mau, aprende-se desde cedo. O mundo aprecia violências e tudo que ela tem a nos oferecer. O mundo nos faz, na melhor das hipóteses, voyeurs beirando o sadismo. O anexim jornalístico que corre nos países de fala anglo-saxã resume bem a história: if it bleeds, it leads. Traduzindo como quem acabou de levar um choque dos bons nos países baixos: "sangrou, liderou". Ou seja, tem sangue, pega manchete. Lembra aqueles jornais que não sei se ainda existem: O Dia, Notícias Populares. Era só crime. E hediondos todos. Acabou dando em refrão popular e samba gravado pelo Jorge Veiga, o chamado "Caricaturista do Samba". Vocês manjam. Se espremer, sai sangue. Por esse motivo, em minhas braçadas pelas águas revoltas da internet (água é muito a propósito, como veremos), estranhei ver tão pouco espaço dado ao que tanto espaço rendeu na imprensa britânica e americana. Refiro-me às torturas a que supostos suspeitos teriam sido submetidos no Iraque. Sapequei "supostos" e "suspeitos" e fui de futuro do pretérito com "teriam" com o objetivo apenas de não levar, na melhor das hipóteses, uns cascudos metafóricos ou verdadóricos. Gato escaldado... Pois é. Vamos lá. Os americanos andaram indo de caldo, aquele violento afogamento parcial e em etapas, também conhecido por seu nome de guerra, e "guerra ao terror", como um premiado com Oscar, de "prancha d'água" (waterboarding, né?), pra cima de indivíduos que tivessem uma remota possibilidade de andarem metidos em atividades ditas terroristas. Brincaram à beça de tacar encapuzado em tanque cheio de água até que o infeliz, entre uma golfada e outra do precioso líquido, confessasse. Tudo. Não importa o quê. O jornalista britânico Christopher Hitchens, de 59 anos, ora radicado nos Estados Unidos, andou experimentando uma mergulhada legal dessas nas mãos de especialistas, para efeito de reportagem para a revista Vanity Fair, que já foi melhor quando mais leviano. Hitchens não aguentou mais que uns minutinhos. Dois ou três caldinhos. Está lá no YouTube. Confiram. O boneco chegou à conclusão que nunca ninguém negou por aquelas bandas que já foram comandadas por George W. Bush. Sim, senhor, é tortura. E das bravas. Muito Mohammed, muito Abrahim e outros de igual nomenclatura pegaram mais de 500 caldos. Y otras cositas más, como dizem e escrevem pessoas tristes sem imaginação. Até que a coisa chegou aqui. Para ser simples e direto: membros dos serviços secretos britânicos teriam não só assistido às sessões de tortura como também assistido no processo, só que no outro sentido, o de dar uma mãozinha. Parlamentares querem inquérito, ex-diretora do MI5 (Inteligência Militar, seção 5), ilustríssima Lady Manningham-Buller declara que "tudo indica que agentes estiveram envolvidos em atividades ilegais no estrangeiro" e mostra-se favorável a uma investigação rigorosa da questão. Há uma cláusula não-escrita, cognominada a "cláusula James Bond", que estipula que agentes dos serviços de segurança não estão sujeitos ao controle político. Bond, por sinal, era MI6, agindo pois, conforme sua agenda, em solo estrangeiro. Daí seu "00" na carteirinha: licença para matar. Ou, neste século 21, se lhe desse na veneta, participar ativa ou passivamente de sessões de tortura. Ajudando a ajustar um capuz aqui, amarrar um par de mãos árabes ali, ajustar uma prancha, encher de água um bom balde. Eu, se fosse vocês, daria uma conferida nessa história algo desprezada pela nossa imprensa. BBC Brasil - Todos os direitos reservados. É proibido todo tipo de reprodução sem autorização por escrito da BBC.

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