Ivan Lessa: Londinium revertere ad latinum

Colunista comenta a proposta do prefeito de Londres para que mais escolas passem a ensinar o latim.

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Por Ivan Lessa
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Meu problema era o dativo. Nominativo e genitivo singular, eu tirava de letteris. Tudo eram flores. Rosa pra cá, rosae pra lá. No fim do ano, o professor - um norueguês, "seu" Jansen - profundo conhecedor da vida e das coisas do país que escolhera para viver tinha um único critério inabalável no exame oral: 10 para as moças, 9 para os rapazes. Parecia-me e ainda me parece correto e justo. Mais tarde, quando crepusculei merencóreo em meu primeiro soneto, percebi que, mesmo mais que bisonho aluno, o pouco que eu aprendera me era útil. Passei direto do bafo-bafo na rua com figurinhas das balas Futebol para os casos retos dos nominativos e vocativos. Até mesmo o ablativo e seus adjuntos adverbiais não eram estranhos a meu corpo-a-corpo com o texto dos primeiros anúncios que ensaiei, como junior copywriter da J.Walter Thompson, prestigiosa companhia de publicidade que teve a honra de me acolher como iniciante na gloria mundi do trabalho. Passou o tempo e, do bafo-bafo inocente, passei para o bafão pesado das bebidas fortes. Eram bons, um e outro. Perdi, no entanto, meu latim, que já era pouco e, como certas ruas e certos amores, se acabou. No que fui acompanhado por todo um país. Brasileiro. Onde se fala e se escreve, ou tenta se falar ou escrever, português, uma língua do ramo ocidental dessa família de origem indo-europeia, falada pelos habitantes do Lácio (culto e belo, ao contrário de certos maus poemas) e pelos antigos romanos, que ainda não haviam descoberto a lambreta e o fettuccine al triplo burro. In suma: uma língua julgada morta. Inútil. Paspalhona. Burrega. Que fizemos nós do latim então? O de sempre. Uma reforma totalmente ortográfica nele. Tacamos-lhe um AI-5. Caçamos-lhe os direitos. Que fosse, berramos em comum, se roçar nas ostras. Outros tempos, outros países. Grã-Bretanha. Ou Reino Unido. Os ingleses, ignorantões (mesmo) desconhecem o fato de que 60% da língua que falam, lêem e escrevem vêm desse ilustre falecido, o latim. Acham graça se apontarmos (eu e você, leitor atento que está comigo e não abre) para o fato de que esta língua românica, ou neolatina, que deu origem também ao espanhol, ao italiano, ao francês, ao romeno e ao catalão, é de alguma importância, merece respeito e que tiremos o chapéu em sua presença. Latim não é privilégio das bulas de remédio, das ciências, da fauna e da flora e da linguagem jurídica. O latim está na boca desses malandros que vão do pub (origem latina) ao futebol (origem latina) e, se não fizerem besteira (origem latina), tem (origem latina) a liberdade (origem latina) de retornarem (origem latina) para seus (origem latina) domicílios (origem latina). Só não me perguntem os casos e as declinações. Meu passaporte me acusa e não nega: brasileiro sou. Ainda. Agora, aqui em Londres, um ligeiro bafafá (origem africana) come solto. Por quê? Porque o prefeito, este esplêndido exemplar de São Bernardo louro chamado Boris Johnson, conclamou que mais colégios e escolas voltem a ensinar o latim como parte do currículo (origem... pois é). Uma pesquisa apontou para o fato de que mais de 75% dos colégios privados oferecem lições clássicas de civilização, entre as quais podemos, sereníssimos, incluir o latim, pois nada mais clássico, nada mais civilizado. Latim, que já foi nosso professor e guia, e ainda ensina algumas pessoas (poucas, muito poucas) a lidar com o idioma a nós legado, imerecidamente, ao que parece. Em todo caso, por tudo que nos deixou e nós deitamos fora, Deo gratias. BBC Brasil - Todos os direitos reservados. É proibido todo tipo de reprodução sem autorização por escrito da BBC.

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