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Ivan Lessa: Caretices

Colunista defende a necessidade de se manter acesa a chama da excentricidade na Grã-Bretanha.

Por Ivan Lessa
Atualização:

Enganam-se aqueles que acreditam que a outrora famosa "excentricidade britânica" acabou. E se eu usei "outrora" e o verbo acabou foi com o objetivo expresso de exibir não apenas um solecismo de minha parte como também deixar claro que, após 32 anos seguidos nestas ilhas, faço o que posso para manter vivo, bem no alto e sonoro, anacolutos e bizarrias em solo britânico. Cumpro o melhor que posso meu dever de imigrante (legal) em solo verde e, infelizmente, cada vez mais globalizado. Colho excentricidades por hábito e gosto. Como, todas as manhãs, faço um cafuné ligeiro num gato que mora perto de mim e o deixam para pegar um solzinho na porta da casa. Trata-se de um gato "ginger", ou ruivo, daqueles zebrados, e ronrona bonitinho para mim, tendo de certa feita, em dia inesquecível, me seguido até a esquina com a expressão superior que só os gatos têm. Na esquina, eu já com o medo de alguém ter chamado a RSPCA, ou seja, a Real Sociedade para a Prevenção de Crueldade Contra Animais (aí foi, de lambuja, uma semi-excentricidade desta terra), enxotei-o carinhosamente, com doces palavras de incentivo ("Go home, dearie, go home!") antes que uma louca das cercanias (segunda semi-excentricidade: toda rua tem sua louca ou louco) me atacasse de vassoura em riste berrando impropérios. O gato voltou para casa. Eu segui meu caminho. Ambos, eu e o gato, não temos muito a fazer na vida, mas procuramos não fazer com o menor alvoroço possível. Não. Aqueles homenzinhos de casaca, calça listrada e chapéu coco não estão mais de pasta na mão a caminho do escritório na City. Não. Eles acabaram. Passaram desta para melhor. Ou pior. Que se sabe deles? Muito, muito pouco. A bibliografia é mínima. Já os cartuns proliferavam e podem ser encontrados hoje nos sebos e nos sítios eletrônicos especializados em passadismos. A caminho da City agora, só uns rapazes e moças muito alegres da vida, falando alto no celular, tudo de laptop ao lado, quando não abertos no colo na cadeira do metrô ou nos bancos que tiverem a rara ventura de em seus caminhos encontrarem. Aí está outra excentricidade: Londres é a grande cidade do mundo mais carente em bancos na rua. Fala quem sofre de enfisema bravo e deles vive precisando. Neca. Há que se virar mais que charuto em boca de bêbado. Pois, pois. O que resta em matéria de excentricidade? Afinal este país é tido como eminentemente conservador (no sentido não-político) e zeloso de suas tradições. Que fim levaram as excentricidades? Sim, claro que tem um sítio que só as enumera. Mas ter sítio na rede é lugar-comum, feito ter rede no sítio, e, ao menos para mim, não vale. Curto, pois, o gurning. O que é isso? Muito simples: careta. Fazer careta. Não que eles façam para quem passa ou se apoia bufando (esse enfisema...) num poste. No, sir. É fazer caretas, as mais feias possíveis, pois há juízes para isso (e tome excentricidade total), no sentido competitivo. Campeonatos, torneios, taças de gurning como os há no críquete, tênis e golfe. Acabo de ser informado por um jornal que uma senhora disputando uma partida careteira final, perdeu os sentidos logo após vencer uma competição só para damas, realizada na Feira de Egremont, no condado de Cumbria. Ao que parece, Anne Wood, pois esse o nome da gurner vencedora, não resistiu ao excitement da vitória e desmaiou. Os juízes, depois de darem o devido desconto pela pressão de ficar em cena durante um bom espaço de tempo, foram inclementes: não pode porque não pode. Careteiro, gurner, tem que aguentar o tranco - e é isso aí. Nem levaram em consideração os 62 anos por certo bem vividos de Anne Wood. A competição não foi registrada pela televisão mas, se houver uma perto de casa, com banco no caminho (táxi aqui anda uma loucura de caro), prometo ir. E, quem sabe, talvez até mesmo competir. Neste fim de semana mesmo começarei um treinamento intensivo diante do espelho do banheiro lá de casa. Manter desfraldada a bandeira aloprada da excentricidade. Afinal, dizem, nunca é tarde para se começar qualquer coisa. BBC Brasil - Todos os direitos reservados. É proibido todo tipo de reprodução sem autorização por escrito da BBC.

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