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Ivan Lessa: A boca no trombone

Colunista relembra saudoso o jazz que não existe mais.

Por Ivan Lessa
Atualização:

O ano está em seu apagar das luzes. Gosto das coisas que acabam. O ciclo da vida. Eu vou acabar. Você aí, de dedo no nariz, vai acabar. É assim mesmo. Se segura que é tudo uma questão de tempo. Daí, dá-se aquele pulinho. Ou pulão. Isso aí. Pensamentos crepusculares, Como eu vivo repetindo, em francês, para não ser entendido, tout passe, tout lasse, tout casse. Tudo passa, tudo cansa, tudo se quebra. Está numa canção linda de morrer (pois é) que o Jean Sablon gravou há séculos, Je Tire ma Reverence. Foi-se Jean Sablon, inclusive aquela moda, nada mais simples, que nos anos 40 durou 3 meses no Brasil e a que se dava o nome do cantor francês: era usar a camisa para fora da calça. Foi-se a chanson. Não há motivo para reclamações. A vida é assim mesmo. Ou morrer é assim mesmo. Tanto faz. Pensamentos crepusculares, repito. Levantemos o tom, a moral. Cheguemos à vitrola (eu disse vitrola e não "sistema de som) e, depois, com o maior cuidado, taquemos lá um disco. De jazz. Pode ser vocal, pode ser instrumental. Jazz. Não, não cometerei a imbecilidade de falar em "aqui jaz o jazz". Isso é burro e triste. Embora seja verdade que não haja mais jazz. Já voltarei à questão, a que me levou a estas indigitadas e mal digitadas linhas. Antes quero lembrar ao freguês algumas outras coisinhas (os idiotas adoram escrever "y otras cositas más") que se foram para nunca mais voltar. O Rio de Janeiro. O Carnaval. O samba de breque. Para ficar em coisas nossas, nossas coisas. Poderia ser bem mais. Umas 785 e 386 que se foram para nunca mais voltar. Subamos agora para os Estados Unidos. Ouvidos atentos. Nova York, Nova Orleans, Chicago. Cidades com tradição jazzística. Procuremos ouvir um bom jazz. Não tem. O disco na sua vitrola, aquele colocado no prato algumas linhas anteriores, tem sim. Inclusive remasterizado em digital, se você não tiver um gosto muito esotérico. Agora, ao vivo, num clube enfumaçado (esse também já deu sua despedida), neris de pitibiriba, para empregar uma expressão quase tão já era quanto "já era". Sobraram uns caras esquisitos que ficaram muito tempo em casa colados a um som ou a uma vitrola. Sobrou, felizmente, e eis que chego ao personagem central deste conto de Natal, sobrou Wynton Marsalis, trompetista e compositor americano, diretor artístico de Jazz no Lincoln Center e um dos últimos homens legitimamente de jazz, embora sua concepção das raízes do jazz e de sua concepção tenha gerado algumas críticas severas por boa parte da gente boa que restou entre músicas e críticos do gênero. Para muitos, Marsalis teria difundido uma noção regressiva do jazz, dera uma parada no tempo, ou seja, ficara com o tipo de música existente até mais ou menos o ano de 1970. Seja como for, Wynton Marsalis é figurinha importante em minha coleção. Agora mesmo, neste apagar de luzes, surgiu no noticiário britânico (para quem sabe ler direitinho) pedindo publicamente que uma alma caridosa lhe dê o nome e, se possível, endereço, telefone, e-mail, o que for, do indivíduo que, no festival de jazz de Siguenza, na Espanha, ligou para a Guarda Civil pedindo que dessem uma batida na festança, que estava lhe fazendo mal à saúde de amante purista da música de origem afro-americana. Com ênfase, segundo ele, no conjunto Sax and Drumming Core, de Larry Ochs, que chama os sons que emite de "música contemporânea". E que viva a Espanha! Os homens uniformizados ouviram o grupo por uns instantes e concluíram que o queixoso estava certo: aquilo não era jazz. Mais não puderam fazer, infelizmente. A lei não prevê. Marsalis, como eu aqui, leu a notícia num jornal americano e, agora, quer presentear o espanhol de ouvidos apurados com uma coleção contendo a maior parte de suas gravações. Parece que seu primeiro nome é Rafael ou Ramón. As saudáveis investigações prosseguem. Descoberto o homem, eu estou nessa. Seguirá pela moderna tecnologia informática, um arquivo com todas as colunas escritas para a BBC Brasil durante os últimos cinco anos por este bobo alegre que vive a regar, no escuro, as flores mortas do passado. BBC Brasil - Todos os direitos reservados. É proibido todo tipo de reprodução sem autorização por escrito da BBC.

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